Ainda hoje nos candomblés do Brasil procura-se ensinar que a experiência é a chave do conhecimento, que tudo se aprende fazendo, vendo, participando. Cada coisa no seu devido tempo. Assim, o conhecimento do velho é o conhecimento legítimo, ao qual se chega ao longo de toda uma vida. Roger Bastide, que estudou o candomblé na década de 1950, escreveu que “são os sacerdotes que têm a noção do valor do tempo; é o tempo que amadurece o conhecimento das coisas; o ocidental tudo quer saber desde o primeiro instante, eis por que, no fundo, nada compreende” (Bastide, 1978: 12).
Toda a hierarquia religiosa é montada sobre o tempo de aprendizagem iniciática, numa lógica segundo a qual quem é mais velho viveu mais e, por conseguinte, sabe mais. Mas para o jovem de mentalidade ocidental, o tempo urge, o tempo deve ser vencido. A palavra escrita é o meio de acesso ao saber e a oralidade não faz mais nenhum sentido. Só faz sentido quando se acredita que a fórmula aprendida pela via da oralidade é a única capaz de se mostrar eficaz, mas isso é uma imposição religiosa defendida apenas pelos amantes da tradição, seja lá o que isso possa significar. Numa sociedade como a nossa, em que a ciência já desmascarou o segredo, é difícil acreditar que tudo tem o seu tempo, e que é preciso esperar a hora certa, pois a vida diária e a luta pela sobrevivência se encarregam de mostrar o contrário. Em nossa cultura, é premiado quem chega primeiro.
Os membros de um candomblé são classificados basicamente em duas grandes categorias de idade iniciática: os iaôs, aqueles iniciados há pouco tempo e que formam o grupo júnior, e os ebômis, os iniciados há bastante tempo e que assim são capazes de realizar, com autonomia, atividades rituais mais complexas, o grupo sênior. A palavra ebômi, do iorubá egbomi, significa exatamente “meu mais velho”, e era assim que na antiga família poligínica iorubá as esposas mais velhas se tratavam. Iaô, nessa família tradicional, era a denominação dada às esposas mais novas. No candomblé, enquanto os ebômis conquistam certa autonomia em relação à autoridade suprema da mãe ou do pai-de-santo e são encarregados de tarefas rituais importantes, de prestígio dentro do grupo, com privilégios e honras especiais, as iaôs (ou os iaôs, pois há muito a palavra iaô perdeu no candomblé a conotação de esposa), os jovens iniciados, enfim, só fazem obedecer, usando símbolos e cultivando gestos e posturas que denotam a sua inferioridade hierárquica. Lembrando que a estrutura organizacional do candomblé é uma reprodução simbólica da estrutura tradicional da família iorubá, de resto perdida no Brasil, evidencia-se a importância da experiência acumulada na constituição dos grupos de autoridade. Os ebômis são os que sabem, porque são mais velhos, viveram mais, acumularam maior experiência. Sua autoridade é dada pelo tempo acumulado, que pressupõe saber maior.
Como o candomblé é religião e em nossa sociedade a religião é uma das esferas autônomas da cultura (o que faz da religião dos orixás na América algo bem diferente do que foi na África), a noção de tempo acumulado no âmbito religioso entre nós tende a ser, e cada vez é mais, descolada do tempo que marca o transcurso da vida. Pode-se ingressar no candomblé, por livre escolha, em qualquer momento da vida, em qualquer idade. Assim, a idade biológica da pessoa não é a mesma da idade iniciática, de modo que um jovem iniciado há muito tempo pode ser o ebômi de um iaô que se iniciou depois de maduro. O tempo de iniciação transformou-se no tempo que realmente conta. Evidentemente, nos primórdios do candomblé, a passagem de uma sacerdotisa júnior para a categoria sênior era o resultado natural do saber religioso acumulado durante o tempo necessário, durasse quanto durasse. O reconhecimento por parte do grupo de sua capacidade e competência na realização de atribuições rituais complexas era resultado natural do fazer dessas atribuições, combinado com a dedicação religiosa expressa por meio de sucessivas obrigações rituais a que se submetia a devota. Cuidar de seu orixá pessoal, oferecendo-lhe os necessários sacrifícios periódicos, e trabalhar com autonomia em benefício do grupo eram as condições que indicavam maturidade, competência nos ritos, capacidade de liderança, saber e autoridade.
Numa determinada época da consolidação do candomblé, foi necessária a criação de rito de passagem específico que tornasse público o reconhecimento da condição de senioridade, rito hoje conhecido pelo nome de deká, a partir do qual a iaô assume a posição de ebômi, de mais velho. Agora fazendo parte de uma sociedade em que o tempo que conta é o tempo do calendário, dotado em nossa cultura de objetividade inquestionável, o candomblé acabou por mensurar em anos o tempo de aprendizagem do iaô. Depois de se submeter ao grande rito de passagem que o inclui no candomblé como sacerdote júnior, a chamada feitura de orixá, o iaô pode, depois de anos de aprendizado, e tendo cumprido os ritos intermediários, ascender ao grau de ebômi, conquistando assim sua senioridade. Como sênior poderá receber incumbências de mando, assumir tarefas de prestígio e iniciar novos adeptos, podendo, se quiser, abrir seu próprio terreiro. Em algum momento no meio do curso do século XX – e ninguém sabe dizer como foi nem de onde veio a iniciativa –, a lei-do-santo, espécie de código consensual não escrito que regula os costumes e a vida religiosa nos terreiros, em permanente constituição, fixou em sete o número mínimo de anos necessários ao recebimento do grau de senioridade, o tempo do deká, tempo de autoridade. O deká é o coroamento de uma seqüência de obrigações que inclui, depois da feitura, a obrigação de um ano, a de três anos e finalmente a de sete anos, tudo definido numa escala de tempo ocidental. Evidentemente, atrasos eventuais em qualquer etapa arrastam para adiante o período total.
Esse esquema, muito característico de sociedades de estruturação social mais simples e de associações iniciáticas, é rigorosamente observado nos candomblés. Pode ser apreciado na ordem em que as filhas-de-santo se colocam na roda das danças, na ordem dos pedidos de bênção – quem beija a mão de quem – e em quase todos os momentos em que a etiqueta do terreiro imprime a marca do tempo.
Esse esquema, muito característico de sociedades de estruturação social mais simples e de associações iniciáticas, é rigorosamente observado nos candomblés. Pode ser apreciado na ordem em que as filhas-de-santo se colocam na roda das danças, na ordem dos pedidos de bênção – quem beija a mão de quem – e em quase todos os momentos em que a etiqueta do terreiro imprime a marca do tempo.
Um lema da chamada lei-do-santo muito cultivado afirma que o mais velho sabe mais e que sua verdade é incontestável. Saber é poder, é proximidade maior com os deuses e seus mistérios, é sabedoria no trato das coisas de axé, a força mística que move o mundo, manipulada pelos ritos. Por isso, o mais novo prostra-se diante do mais velho e lhe pede a bênção, não lhe dirige a palavra se não for perguntado, pede licença – Agô ebômi, licença meu mais velho – para falar na sua presença, oferece-lhe sua comida antes de começar a comer – Ajeum, vamos comer, servido? –, abaixa a cabeça quando dele se aproxima, curva-se à sua passagem, inclina-se e o cumprimenta juntando as mãos – Mojubá, salve! – quando se canta para o orixá a que este mais velho é devotado. Tudo isso acontece numa ordem na qual cada um conhece bem o seu posto, ou pelo menos deveria conhecer.
Muitos que se iniciam hoje no candomblé têm uma aspiração ocupacional muito clara: desejam ser pais e mães-de-santo, buscando nessa religião, como acontece nas outras, um meio de vida e uma oportunidade de ascensão social. Para esses, quanto mais cedo for alcançada a senioridade, melhor, não raro burlando a contagem dos sete anos.
A busca do conhecimento transforma-se, então, numa luta contra o tempo, invertendo completamente sua noção original, quebrando a idéia de que o tempo é a soma das experiências de vida. O terreiro passa a ser visto como uma escola ocidental, que estipula prazos e, ao final deles, outorga títulos e diplomas que atribuem direitos no mercado profissional. O lugar do tempo africano, o tempo do mito, é tomado pelo tempo do relógio.
Velhos iniciados contam que nos idos e saudosos tempos do candomblé antigo o recolhimento à clausura, onde se processa a iniciação, não tinha duração pré-determinada. O filho-de-santo ficava recolhido no terreiro o tempo necessário à sua aprendizagem de sacerdote e à realização de todas as atividades que os ritos de uma feitura de orixá envolvem. Podia ficar meses, muitos meses, isolado do mundo, totalmente mergulhado na sua iniciação. Isso ficou para trás. Hoje, cada iniciação, que se faz num período que não soma os dias de um mês, tem de ser cuidadosamente planejada, de modo a encaixar os dias de recolhimento do filho-de-santo nas suas férias de trabalho ou nos momentos vagos deixados pelos compromissos da vida secular. O tempo da iniciação passa a ser regulado pelo tempo do mercado de trabalho. O tempo africano do terreiro é vencido pelo tempo da sociedade capitalista.
Nesta nossa sociedade do tempo irreversível, cada vez mais as imagens e referências do tempo circular vão se perdendo: o relógio analógico, com seus ponteiros sempre dando a volta para retornarem ao ponto zero, são substituídos pelo relógio digital; os supermercados 24 horas e outros negócios essenciais ao consumo na vida cotidiana não fecham para descanso; os canais de televisão ficam no ar noite e dia; trabalha-se em qualquer período; a internet mantém ininterrupto o acesso aos arquivos de informação dos computadores ligados na rede mundial; até o amor se faz a qualquer hora nos motéis full-time; a eletricidade há muito acabou com a escuridão e fez da noite, dia; a engenharia dos transgênicos nos faz sonhar com uma natureza transformada a cada colheita. Se até na natureza o tempo cíclico vai perdendo importância, que dirá na vida do terreiro.
Os velhos do candomblé falam do passado como um tempo perdido, que já não se repete, vencido por um presente em que impera a pressa, o gosto pela novidade, a falta de respeito para com as caras tradições e, sobretudo, o descaso para com os mais velhos. Dizem que “o candomblé hoje vive de comércio, é pura exibição”, reclamam que “uns querem ser mais que os outros”, falam que “os que mal saíram das fraldas, que não sabem nada, já empinam a cabeça para os antigos”, lamentam que “os velhos babás e as velhas iás não tem mais voz em nada”, asseveram que “os jovens o que querem é sugar os seus mais velhos e depois chutar seu traseiro e buscar outro lugar onde podem mandar à vontade”. Falam com saudade daquele mundo ideal que ficou para trás e gostam sempre de frisar que “no meu tempo não era assim”, repetindo que “hoje ninguém mais tem humildade, querendo saber mais do que os antigos, essas crianças presunçosas, esses jovens cheios de vento”. Seu discurso triste revela certamente muito de nostalgia da juventude, mas é também o testemunho verdadeiro de perdas efetivas.
O presente agora se descortina como ruptura, descontinuidade. O passado não explica mais, nem se completa no presente. Os mitos vão sendo esquecidos, os odus simplificados, os deuses ganham ares mais condizentes com a modernidade. Os jovens acusam os mais velhos de levarem para o túmulo segredos iniciáticos que não transmitem para ninguém, enfraquecendo os mistérios da religião e sua força, o axé, mas de fato não se importam muito com isso. Acreditam menos na existência dos segredos do que os mais velhos diziam acreditar. Aprenderam que a tradição é e pode ser construída a cada instante, pois a lei-do-santo, que ordena as tradições do candomblé, não tem mais do que um século de vida, nem uma única versão, e está sempre mudando. E levam adiante sua religião, pensando no futuro.
Fonte: O candomblé e o tempo - Reginaldo Prandi
Continua...
Fonte: O candomblé e o tempo - Reginaldo Prandi
Nenhum comentário:
Postar um comentário