terça-feira, 31 de maio de 2011

Asè Engenho Velho


Fundado em 1830, no período da escravidão no Brasil, os negros formavam suas comunidades nos engenhos de cana. Na Bahia, princesas, na condição de escravas, vindas de Oyó e Keto, fundaram um centro num engenho de cana. Depois se agruparam num local denominado Barroquinha, onde fundaram uma comunidade de Nagô que, segundo historiadores, remonta há mais ou menos 300 anos de existência. Sabe-se que esta comunidade foi fundada por três negras africanas cujos nomes são: Ìyá Detá (Adetá), Ìyá Kalá e Ìyá Nasso, e de um sacerdote ligado aos cultos de Sángò e de Ifá, que tinha o título de Bangbosè Obitikò. Não se tem certeza de quem plantou o Asè, porém o Engenho Velho se chama Ilè Ìyá Nasso Oká.

O Ilè Ìyá Nasso funcionava numa roça na Barroquinha, dentro do perímetro urbano de Salvador. Os africanos que se encontravam ali, lugar deserto naquela época, porém próximo ao Palácio de sua Real Majestade, tiveram receio de intervenção das autoridades no seu culto; daí, Ìyá Nasso resolveu arrendar  terras do Engenho Velho  do Rio Vermelho de Baixo, no trecho chamado Joaquim dos Couros, lugar onde se encontra até hoje, estabelecendo aí o primeiro Terreiro do Culto Africano na Bahia. A Ìyá Nasso, sucedeu Ìyá Marcelina. Após a morte desta, duas de suas filhas, Maria Júlia da Conceição e Maria Júlia Figueiredo, disputaram a chefia do Candomblé, cabendo à Maria Júlia Figueiredo, que era a susbtituta legal (Ìyá kekere), tomar a posse de Mãe do Terreiro.


Maria Júlia da Conceição, afastou-se com as demais dissidentes e fundaram outro Ilè Asè (o Ilè yá Omin Asè Ìyá Masse - Gantois, em 1849). Susbtituiu Maria Júlia Figueiredo na direção do Engenho Velho,  a Mãe Sussu (Ursulina de Figueiredo). Com sua morte, nova divergência foi criada entre suas filhas: Sinhá Antônia, substituta legal de Sussu, por motivos superiores não podia tomar posse da chefia do Candomblé, em consequência o lugar de mãe foi ocupado por Tia Massi (Maximiniana Maria da Conceição). Vencendo o partido da Ordem, os dissidentes, inconformados, fundaram então um outro Ilè Asè (Ilè Asè Opo Afonjá, por Obá Biyi, Mãe Aninha, em 1909). 



A direção sacerdotal do Engenho Velho foi posteriormente confiada à Marieta Vitória Cardoso, Oxum Niké, recentemente desaparecida. Atualmente, assumiu a chefia da casa, a Ìyálòrisá Altamira Cecília dos Santos, filha legítima de Maria Deolinda, Sociedade Beneficente e Recreativa. A Sociedade Beneficente e  Recreativa São Jorge do Engenho Velho que representa a Casa Branca, foi legalmente fundada a 25 de julho de 1943, registrada no Cartório Especial de Títulos e Documentos em 02 de maio de 1945 sob nr. 15599, declarada de utilidade pública pela Lei Municipal 759 de 31 de dezembro de 1956, é regida por Estatuto e tem personalidade jurídica. 



O Terreiro: O terreiro é de Osóòsi e o templo principal de Sángò. O barracão, que tem o nome de Casa Branca, é uma edificação alongada com várias divisões internas que encerram residências das principais pessoas do Terreiro, com também espaços reservados aos quartos de Òrìsás, quarto de Asè, salão onde se realizam as festas públicas, bem como a cozinha onde se preparam as comidas sagradas. Uma bandeira branca hasteada no Terreiro indica o caráter sagrado deste espaço. No telhado do barracão, símbolos de Sangò identificam o Patrono do Templo. Tem como endereço Av. Vasco da Gama, 463. 

Em redor do barracão existem várias casas de òrìsás. As obrigações religiosas da Ilè Asè começam no fim de maio ou princípio de junho com a Festa de Osóòsi. A festa de Sangò Airá tem lugar a 29 de junho. Na última sexta-feira de agosto, realiza-se a Cerimônia de Águas de Osàálá, seguindo-se os três domingos consecutivos, nos quais se festeja Oduduwa no primeiro, Osalufan no segundo e a Festa do Pilão em homenagem a Osogiyan, no último domingo. Na segunda-feira imediata, festeja-se Ogún e na seguinte Omolú. Havendo no entanto, um espaço para iniciação de novas filhas, prossegue as festas em louvor a Yànsán, Sangò, Òsún e as ìyagbás, terminando o ciclo festivo no final de novembro. 

No início, as atividades do Ilè Asè sofreram perseguições da sociedade e por parte da polícia. Já no período da República, o Candomblé fora proibido de exercer as suas atividades e os terreiros ficaram subjulgados à Delegacia de jogos, entorpecentes e lenocínio. Hoje porém a situação é diferente. 



O Ilè Asè Ìyá Nasso é o primeiro Templo de Culto Religioso Negro do Brasil - Casa Branca do Engenho Velho. É o primeiro momumento negro considerado Patrimônio Histórico do Brasil desde o dia 31 de maio de 1984 (tombamento do terreiro do Engenho Velho). Antes disso, em 1982, o terreiro já havia sido tombado como Patrimônio da Cidade de Salvador. Em 1985, o Terreiro do Engenho Velho foi considerado Asè Especial de preservação Cultural do Município de Salvador. A Sociedade São Jorge do Engenho Velho, representante legal da Comunidade do Ilè Asè Ìyá Nasso Oká, foi considerada da utilidade pública municipal e estadual. É membro do Conselho Geral do Memorial Zumbi. 

Atualmente está feito o plano de preservação do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho e prepara-se o projeto de recuperação da área em convênio com o Ministério da Cultura e a Prefeitura Municipal do Salvador. 



O terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, mais antigo do Brasil, possui um vasto colégio sacerdotal composto pelas egbomins, ogans e oloyés, além de muitos ìyáwòs e abiyans. Deu origem a inúmeros templos afro-brasileiros. 




Fonte: José Abade de Oliveira (Otun Olu k'otun Jagun)


Ìwà Pele (O Bom Caráter) - Lenda

A importância dada ao bom caráter (Ìwà Pele)

 
Ìwà é o que caracteriza uma pessoa sob o ponto de vista ético. Para ser feliz uma pessoa deve ter ìwà pele, pois quem tem bom caráter não entra em choque com os seres humanos nem com os poderes sobrenaturais. Esse é o mais importante dos valores morais yorubá, e a essência da fé consiste em cultivá-lo.
 
A lenda de Ìwà é relatada na literatura de Ifá:
 
Ìwà era uma mulher de rara beleza com quem Orúnmílà se casou, após ela ter se separado de diversos outros deuses.
Apesar de sua beleza, Ìwà tinha maus costumes e falava demais, sendo ainda preguiçosa e irresponsável.
Depois de algum tempo de casados,
Orúnmílà, não podendo suportar o mau comportamento de sua esposa, mandou-a embora.
 
Entretanto, quando Ìwà partiu, Orúnmílà percebeu que não podia viver sem ela. Perdeu o respeito dos vizinhos, sua prática divinatória perdeu o valor, seus clientes se afastaram, ficou sem dinheiro, enfim perdeu tudo e foi desprezado por todos.
Tentando achar uma solução, vestiu-se de Egúngún e saiu por aí, à procura de Ìwà. Foi à casa dos 16 Odus de Ifá à procura da esposa, cantando na porta de cada um:
 
“Grande Sacerdote de Ifá de Ajeró,
Adivinho de Ajeró,
Onde você vir Ìwà, diga-me.
É Ìwà, Ìwà que estou procurando.
Se você tem dinheiro, mas não tem Ìwà,
O dinheiro não é seu;
Ìwà é a pessoa que eu procuro.
Se alguém tem filhos, mas não tem Ìwà,
As crianças pertencem a outra pessoa;
Ìwà, Ìwà é quem nós procuramos...
Se temos uma casa, mas não temos Ìwà,
A casa não é nossa, é de outra pessoa.
Ìwà, Ìwà é o que procuramos.
Se você tem roupas, mas tem falta de Ìwà,
As roupas pertencem a outra pessoa.
Ìwà, Ìwà é o que procuramos.
Todas as boas coisas da vida que um homem possui,
Se ele perder Ìwà, elas passam a pertencer a outra pessoa.
Ìwà, é o que estamos à procura!”
 
(Ogbon inú, awo Alárá;
Dífá fún Alárá, Èjí Osá,
Omo Amúrin kàn dogbon agogo.
Ìmoràn, awo Ajerò, Difá fun Ajerò,
Omo ògbójú koroo jà jále.
Níbo ló gbé ríwà fún un o,
Ìwà, Ìwà là n'wá o, Ìwà.
Ó nó bó o lówó, tóò níwà,
Owo olówó ni.
Ìwà, Ìwà là n'wá o, Ìwà.
Omo la bí,
Tá à níwà, Omo olomo ni.
Ìwà, Ìwà là n'wá o, Ìwà.
Bá a nílé, tá à níwà,
Ilé omílé ni.
Ìwà, Ìwà là n'wá o, Ìwà.
Bá a láso,tá à níwà
Aso, aláso ni.
Ìwà, Ìwà là n'wá o, Ìwà.
Ire gbogbo tá a ni,
Tá à níwà.)
 
Depois de grande procura
Orúnmílà achou Ìwà casada com Olójo. Quando cantou na porta de Olójo, este foi à porta recebê-lo e recusou-se a devolvê-la. Então eles começaram a brigar. Orúnmilá bateu em Olójo com a perna de uma cabra que havia sacrificado antes de sair de casa. O impacto atirou Olójo a muitas milhas de distância, e Ìwà foi levada de volta para sua casa.
 
Ao analisar a lenda vemos as várias razões da importância dada a Ìwà. Primeiro é importante que o bom caráter seja simbolizado por uma mulher. No folclore yorubá as mulheres representam os dois extremos - amor, cuidado, devoção e beleza versus fraqueza, deslealdade e falsidade. Só as mulheres podem simbolizar essa dualidade, de acordo com o conceito yorubá.

A lenda mostra ainda que o homem deve cuidar de seu caráter tão bem como cuida de sua esposa. Da mesma forma que manter a esposa é obrigação do marido, o bom caráter deve ser uma obrigação para os que têm fé e querem viver de forma correta.
As mulheres são consideradas bruxas e podem até ser mentirosas, mas os yorubá crêem que a sociedade não pode sobreviver sem elas. Da mesma forma, pode ser difícil ter bom caráter, mas não se pode ser feliz sem ele.
Ìwà foi uma mulher que perdeu os bons hábitos. Significa que o homem que quer ter bom caráter deve estar preparado para encarar egbin - coisa suja - e passar por algumas situações desagradáveis, que podem ofender sua dignidade e decência. Mesmo assim não deve se desviar do bom caminho, para não perder a essência e o valor de sua vida.
 
Os versos equiparam Ìwà aos bens materiais que os homens almejam: dinheiro, filhos, casa e roupas. Um homem que tem bens materiais, mas não tem caráter, provavelmente irá perder tudo para uma pessoa de caráter, que saberá melhor tomar conta desses bens. Ìwà é o atributo de maior valor entre todos, no sistema yorubá.
 
Vemos que o costume dos zeladores de santo, de transmitir ensinamentos através de lendas (itans) em que os Orixás se comportam como pessoas comuns, com seus defeitos e fraquezas, é também uma herança da cultura tradicional yorubá.



Fonte: CULTURA IORUBÁ - Costumes e Tradições
Maria Inez Couto de Almeida (Ifatosin)

segunda-feira, 30 de maio de 2011

EEGÚN OU EGÚNGÚN


Egúngún é o que o povo chama de Ãrá-Orun-Kìnkìn. Em vida cada pessoa é dirigida por um espírito. Ao morrer, o espírito a acompanha até ao céu. Para evocar os espíritos dos mortos faz-se uma festa uma vez por ano, para chamar Àrá-orun e pedir-lhe para vir à Terra. A festa não tem dia certo.
O espírito não se vê, mas sente-se a presença. É "carregado" por um ser humano do sexo masculino, que é preparado espiritualmente e vestido com uma roupa própria, chamada ago que o cobre da cabeça aos pés, que pode ser branca pintada de azul, de tiras coloridas, etc. dependendo do local.
Eegún usa máscara, que pode ser de madeira, cobrindo a cabeça por completo, com furos para o homem poder respirar. Como fica todo coberto, inclusive as mãos e os pés, ninguém sabe quem ele é.
Após preparado esse homem tem todos os poderes e força espiritual dados por Eegún. Ele pode fazer coisas incríveis, como flutuar, fazer chover, pegar fogo à distância, aumentar de tamanho, curar epidemias, etc.
Cada família tem o seu Eegún, com nomes diferentes. Representa uma pessoa da família que já morreu e volta no dia da festa. Cada cidade também tem os seus Eegún.
No dia de Eegún sair à rua, ninguém pode encostar nem na roupa dele, devido à sua grande força. Quando é necessário, como em casos de seca, epidemia, etc. ele sai pela cidade, para melhorar a situação.

Há um tipo de Eegún que não é incorporação, é folclore. Ele sai pelas ruas da cidade e as crianças correm atrás gritando, e ele bate nelas com uma varinha chamada atori. Nesse caso não há envolvimento de nada sobrenatural.
Nas festas de Eegún todo o povo se reúne. Quando ele chega, faz milagres, dá conselhos, prevê o futuro, e dança ao som dos atabaques. Os Eegún mais velhos e mais fortes sentam e apreciam.
Alguns costumam ir de casa em casa. Ao chegar, os moradores se ajoelham e oferecem-lhe presentes como carneiro, dinheiro, óleo, sal, cabra, mel, etc. Ele então usa todos os presentes para fazer um trabalho para aquela casa, e pede coisas boas para os moradores.
No mato existe um local apropriado para Eegún sair. Chama-se igbàle, e fica num local chamado igbo-oro. Uma pessoa chamada atokun toma conta do local.
A presença de Eegún deixa bem claro que a relação entre os mortos e os vivos existe e não vai acabar.
Em cada localidade existe um tipo de Eegún, com suas peculiaridades. Há vários em Oyo, sendo que um deles, o Elewe, dança ao som de atabaques especiais, chamados bàtá e gangan.
Em Ibadan há um tipo chamado Alápánsánpá e outro chamado Olóòlu, que só sai quando alguma coisa de ruim acontece na cidade, e quando sai não pode ser visto pelas mulheres.
Em Egbá tem Gelede, Elegbódo e Àwùrù, dentre outros.
Em Ekiti recebe o nome geral de Epa, com várias qualidades diferentes, como, por exemplo, Okotorojo, que usa máscara de madeira.
Em Ijeru chama-se Aje, ou Ako Egúngún.
Em Ado recebe o nome de Eegún Ado, e divide-se em Ede e Osasa..
Em Èkó (Lagos) há, por exemplo, Awori e Adimuòrìsa, com a qualidade Eyo.
Em Akoko, perto de Ondo, há uma qualidade de Eegún chamada Apajebúje (mata-feiticeiro-e-come), que sai sempre que acontece algo ruim na cidade. Ele percorre a cidade a pé. Sua roupa é feita de folhas secas de bananeira. Quando ele volta para o mato, após percorrer a cidade, o problema fica resolvido. Se for chuva ela para, se for epidemia, acaba em sete dias.
Em Ikare existe um Eegún que chamado Olomodun, que usa penas na cabeça. Usa um tipo de manto de tiras de pano colorido, enfeitadas com espelhos. Este Eegún só sai no final do ano, e geralmente trabalha para mulheres que não podem ter filhos. No ano seguinte as mulheres que ganharam filhos graças a ele levam as crianças para ele ver.
Mas o mais estranho é um Eegún da tribo dos Tapas, chamado Igúnnú, que chega à altura de 10 a 15 metros.
No Brasil os Egungún eram tradicionalmente cultuados somente na Ilha de Itaparica, na Bahia. Atualmente o culto vem sendo difundido em outros locais.


CULTURA YORUBÁ - Costumes e Tradições
Maria Inez Couto de Almeida - Ifatosin

Prof. José Flávio - nova grande perda para a religião!


É com grande pesar que informamos mais uma grande perda da religião de matriz africana e luta pelo reconhecimento da história e cultura do povo negro.
Faleceu nessa madrugada o o nosso querido Bàbálòrìsá e Profº José Flávio Pessoa de Barros!
Um verdadeiro contribuidor da nossa história, memória e identidade. Um guerreiro e militante contra a intolerância religiosa.

O velório será hoje: 30/05/2011 à tarde na Capela B no Cemitério do Pechincha - Rua Retiro dos Artistas, 307 - Jacarepaguá - Rj.
 
O sepultamento será amanhã dia 31/05/2011 às 10hs. no mesmo cemitério.


Com certeza, nova festa no Orún !!!

Biografia:


José Flávio Pessoa de Barros é um professor e escritor brasileiro, que vive no Rio de Janeiro. Especialidades: Antropologia das Religiões, Religiões Afro-Brasileiras, Etnobotânica.

É autor da tese "Ewe o osanyin: sistema de classificação de vegetais nas casas de Santo Jejê-Nagô de Salvador, Bahia", abordando a classificação das espécies vegetais e as cantigas a eles diretamente relacionados, que foram reproduzidos, gravados e transcritos na linguagem própria do culto, o Yorubá.

Obra

  • A Galinha d’Angola: Iniciação e Identidade na Cultura Afro-Brasileira. Arno Vogel, Marco Antonio da Silva Mello, Rio de Janeiro: Pallas, 1993.
  • O Segredo das Folhas: Sistema de Classificação de Vegetais no Candomblé Jêje-Nagô do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas: UERJ, 1993, 1997, ISBN 85-347-0024-9
  • Ewe Orisa: Uso Litúrgico e Terapeutico de Vegetais. Bertrand Brasil, 2000, ISBN 8528607445
  • Na Minha Casa: Preces aos Orixás e Ancestrais, Pallas, 2003, ISBN 8534703523
  • A Fogueira de Xangô, o Orixá de Fogo, Pallas, 2005, ISBN 8534703507
  • Banquete do Rei-Olubajé, Pallas, 2005, ISBN 8534703493

 

Fonte: Wikipedia


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domingo, 29 de maio de 2011

O PENSAMENTO YORUBÁ SOBRE O CRIADOR


Os yorubá acreditam num criador supremo, chamado Olodùmaré ou Olorun, que além de criar o céu e a Terra com todos os seus habitantes, criou também as divindades (Òrìsá ou Imole) e os espíritos (Èbóra).
Esses seres são de naturezas diversas. Alguns estão com o Criador desde o princípio, antes da criação da Terra, e são chamados de divindades primordiais. Outros são figuras históricas de reis, heróis, guerreiros, etc., que se transformaram em orixás por seus feitos. Outros representam elementos da natureza: árvores, rios, lagos.
Todos os yorubá acreditam na existência de um Ser Supremo. É muito raro encontrar uma pessoa de origem iorubá que seja atéia. Todos professam uma religião, não importa qual.
Os yorubá que seguem a religião dos orixás respeitam o criador de uma tal forma, que nem pronunciam seu nome. Às vezes referem-se a Ele como Bàbá (pai), ou como Olojo Oni-o (o dono do dia de hoje). 

 
Os diferentes nomes usados para designar o Ser Supremo:
No Antigo Testamento vemos que os hebreus não pronunciam o nome de Deus. Eles acreditam que Deus é maior e tem que ser respeitado. Procuram referir-se a Ele usando outro nome - Yaawe. Da mesma forma os iorubá acreditam que o nome do Criador não pode ser mencionado, em sinal de respeito. Preferem dizer Eleda (criador - que criou o céu e a Terra), Elemi (aquele que tem o coração dos seres humanos), e muitos outros nomes.
Olodumàre - Nome de origem duvidosa. Os mais velhos dizem que tem a conotação de “Alguém que tem a totalidade da grandeza máxima” ou “A majestade imortal de quem os homens dependem”.
Olorun - Significa “Dono do céu”, ou “Senhor cuja morada é o céu”. Nas orações usam a expressão Olorun-Olodumare (sempre nessa ordem), significando “Deus supremo que mora no céu e que é todo poderoso”.
Eleda - Significa “Criador”, o Deus Supremo é responsável por toda a criação. É um ser auto-criado, e origem de todas as coisas.
Alààyè - Quer dizer “Aquele que vive”. Sugere que Deus é eterno. Há mesmo um dito popular que afirma: "A ki igbo ikú Olodumarè” (Nunca ouvimos falar da morte de Olodumare).
Elemìí - Significa “O dono da vida”. Quer dizer que todos os seres devem-lhe a vida. Quando Deus retira a respiração de um ser vivo, este morre. É por isso que ao fazer planos para o futuro os iorubá dizem: “Bi Elemìí kò ba gba a, emi yio se èyi tábi èyiinì” - “Se o dono da vida não a tirar, eu farei isto, ou aquilo”.
Olojo-oni - Quer dizer “o dono, ou aquele que controla os acontecimentos do dia de hoje”. Enfatiza a dependência total do ser humano e seus planos.
Além desses há mais uma infinidade de outros nomes. Podemos concluir que, para os iorubá, o Ser Supremo é o Criador do Céu e da Terra, aquele que tem a majestade eterna e maior grandeza e que determina o destino dos homens. Embora se diga que sua morada é no céu, ele não é inacessível, nem está afastado dos homens. Entretanto não deve ser evocado por qualquer motivo. A função dos orixás é justamente servir de mensageiros entre os homens e Olodumare.

 
Atributos do Ser Supremo
Transcrevemos abaixo alguns títulos pelos quais Olodumare é conhecido, e que podemos identificar em rezas e oriki.
É criador - Em todos os mitos a criação da Terra, do céu, de todos os seres vivos e de tudo que existe, bem como de todos os orixás, é atributo de Olodumare. Quando aparece qualquer outra divindade, não tem poder decisório, nem autoridade. Serve apenas como mensageiro. O povo diz que "Ise Olorun tóbi" - O trabalho de Deus é poderoso.
É único - Significa que não existe outro como ele. Por isso não existem estátuas representando-o. Há símbolos, mas não imagens, porque nada pode ser comparado a ele.
É imortal - O Ser Supremo é eterno. Não se imagina que o Dono da Vida possa morrer. É descrito como "óyígíyigí otá ìkú" - A grande pedra imóvel que nunca morre.
É onipotente - Para ele nada é impossível. É descrito como "Oba a sè kan ma kú" - O rei cujos trabalhos são feitos com perfeição. As coisas que ele aprova são bem sucedidas, mas as que não recebem sua bênção tornam-se difíceis ou impossíveis. Há um ditado que diz: "A dùn íse bi ohun tí Òlodumarè l'owo sí. A sòrò íse bi ohun tí Òlodumarè kò l'owo sí" - Fácil de fazer como aquilo que recebe a aprovação do criador; difícil como aquilo que o criador não aprova.
O povo diz também "Aìsàn ló dùn íwò, a kò rí t'Olojo se" (A doença pode ser curada, mas a morte pré-determinada não se pode evitar), porque crêem que o "Controlador dos Acontecimentos Diários" (outro nome para Olodumarè) pré-determinou o que acontecerá a cada pessoa em cada momento da vida, inclusive a morte, e esse dia não pode ser mudado.
Por esse motivo chamam-no também de Olorun Alágbara (Deus Poderoso), Oba ti dandan re ki isele (rei cujas ordens nunca deixam de ser cumpridas) e Alèwi-Lese (aquele que põe e dispõe como quiser).
É onisciente - Tem conhecimento de tudo. Tudo sabe, tudo ouve e tudo vê. É chamado de eleti igbo aroye (aquele que sempre ouve as queixas das pessoas), e também A-rinu-rode olumo okan (Aquele que vê o lado de fora e o lado de dentro das pessoas, o desvendador de corações).
É rei e juiz - Olodumare é visto como um rei muito importante e um juiz imparcial. Chamam-no Obá a dake dajo - O rei que senta em silêncio e distribui justiça. Os iorubá acreditam que ele vê tudo: Bí Oba aiye ko ri o, ti oke 'nwo o (Se o rei da terra não vê você, o rei do céu o vê).
É transcendente - O criador é concebido como um ser social, interessado no que acontece com as pessoas. Protege aqueles que viajam, ou que vão dormir. Ouve as pessoas onde quer que elas se encontrem.
O povo yorubá não lhe ergue templos, mas seu nome está sempre no pensamento das pessoas nas orações ou agradecimentos, em ditados e provérbios. Eles sabem que o Ser Supremo é o criador e governante do universo, enquanto as divindades, criadas por ele, são seus intermediários.
É descrito pelo povo como Atererekaye (aquele que faz o mundo todo sentir a sua presença) ou Ogbigbà tí 'ngbá alailara (o que vem para ajudar aqueles que precisam).
 
Olodumarè e os Òrìsás
O povo acredita que os orixás são intermediários entre os seres humanos e Olodumarè. Quando querem fazer um pedido ou agradecer ao criador, fazem-no a um orixá.


CULTURA YORUBÁ - Costumes e Tradições
Maria Inez Couto de Almeida - Ifatosin

sábado, 28 de maio de 2011

Artigos interessantes - No outono da vida por Ìyá Stella

No outono da vida por  Maria Stella de Azevedo Santos
(Mãe Stella reflete sobre o papel dos velhos.) 


"O Outono chegou! Engraçado…Vi e ouvi propagandas de Festival de Inverno, Festival de Verão, escolas festejando o Dia da Primavera, mas nenhuma comemoração para a chegada da estação das folhas secas, que se desprendem das árvores e caem na terra – o Outono. Por que será? Perguntei-me. E me dei conta que, perto de completar 86 anos, experimento o outono da vida. Entretanto, não é porque as folhas caem, que os velhos devem se permitir cair também, pois a filosofia yorubana nos ensina: “Ìbè.rè. àgba bi a ánànò ló ri”, que quer dizer, “mesmo quando o velho curva o corpo, ainda continua de pé”.
O religioso tem por obrigação prestar atenção à sucessão das estações, uma vez que elas marcam o ritmo da vida e as etapas do desenvolvimento humano. O Inverno, ligado ao elemento água, refere-se à infância; a Primavera, estação das flores, mostra a fluidez do ar e da juventude; o Verão, a intensidade do sol, símbolo do fogo, demonstra o auge do dinamismo e atuação na vida, características do adulto; o Outono – crepúsculo vespertino – que está ligado ao elemento terra, é a luminosidade do sol e do velho que vai aos poucos se escondendo e se aproximando do horizonte.
Há tempos atrás, não se constituía em problema usar as palavras velhice e velho, pois elas apenas se referiam a uma das etapas do desenvolvimento  dos seres vivos. Atualmente, isso é “politicamente incorreto”. É como se fosse uma desvalorização dessa etapa de vida, chegando ao ponto de se tornar um adjetivo pejorativo. Resolveram adotar a expressão “melhor idade”.
Entretanto, será que existe alguma idade que seja melhor que a outra? Na infância, temos a alegria da criança, acompanhada, no entanto, de uma fragilidade, que deixa os adultos em constante atenção. Na adolescência, o caráter espontâneo não deixa de vir acompanhado de uma coragem inconsequente. Na maturidade, se é dono da própria vida e se carrega, no entanto, o peso da responsabilidade. Na velhice, a tranqüilidade decorrente do acúmulo das experiências vividas é gratificante, energia física, porém, não é mais a mesma – falta “pique”. Percebe-se, assim, que em todas as fases sempre existe uma lacuna. É como diz um dos ditados que os velhos gostam de usar, a fim de passar sua sabedoria para os mais novos: “Na mocidade temos vitalidade e tempo, mas não temos autonomia nem dinheiro; na fase adulta, temos vitalidade e autonomia, mas não temos tempo; na velhice, temos tempo e dinheiro, mas não temos vitalidade.
O candomblé é considerado uma religião primitiva. Geralmente, isso é dito com um sentido de desvalorização. Contudo, uma religião é tida como primitiva por ser de origem primeira, original, vinda desde os primeiros tempos. Na referida religião, como em muitas outras de procedência oriental, e nas tribos indígenas, o velho é muito valorizado, ele é considerado um sábio, tendo uma condição de destaque e respeito.
Na cultura yorubana, o velho é um herói, pois conseguiu vencer a morte, que nos procura e ronda todos os dias. Ele tem sempre a última palavra, a qual não deve ser contestada. Tanto que é comum em África, a pessoa que ainda não completou 42 anos se manter calada durante as assembléias comunitárias, a fim de exercitarem a importante arte de ouvir. No candomblé, tentamos seguir a tradição que herdamos e ensinamos aos iniciantes essa difícil arte. Mesmo que o iniciante se ache com razão, ele tem o dever de ouvir o mais velho de cabeça baixa e pedir a benção, por respeito. Todavia, não lhe é negado o direito, de em momento outro, justificar-se.
Não está fácil manter a tradição hierárquica de respeito ao mais velho: enquanto para o candomblé “antiguidade é posto”, fora dos nossos muros, os mais novos, que vivem em uma sociedade imediatista, não querem ou não conseguem encontrar tempo para ouvir experiências que um dia terão que enfrentar. Até porque os pertencentes à classe da “melhor idade”, não se disponibilizam  mais a assumir o papel de transmissores de conhecimento, pois esta característica deixou de ser valorizada na sociedade atual.
Não quero dizer com isso que o idoso deve recolher-se, deixando de aproveitar a vida, já que quando jovem aprendi com minha Iyalorixá que “a vida é boa e gozá-la convém”. Para o bem da sociedade, o povo yorubá diz: “ola baba ni imú yan gbendeke”, mostrando que “é a honra do pai que permite ao filho caminhar com orgulho”. E eu digo: Todo pai é um mestre e todo filho é um discípulo!"



Maria Stella de Azevedo Santos é Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá
Fonte: Mundo Afro - Jornal A Tarde - Salvador - BA

PROVÉRBIOS E ADIVINHAÇÕES

 
Os iorubá têm o hábito de propor adivinhações - àlo e citar provérbios - òwe. Ambos são simbólicos e se baseiam na experiência.
O àlo propõe um raciocínio, e o òwe é um exemplo de vida.
Como exemplo de àlo temos:
Á dúró, ó dúró, a bere, o bere, a lé e, lé e, kò lo. Ìdahún: òjìji (Nós paramos, ela pára, nós abaixamos, ela abaixa, nós mandamos embora, ela não vai. Resposta: a sombra).

 
Òwe - (Provérbios)
Os provérbios iorubá só podem ser ditos pelos mais velhos, pois é necessário muita experiência para saber qual provérbio se aplica a uma situação. Se uma pessoa disser um provérbio na frente de outra pessoa mais velha, imediatamente pede desculpas e a mais velha faz uma prece desejando-lhe longa vida para poder dizer muitos provérbios. Em geral provérbios são conselhos sobre a conduta das pessoas em determinada situação. Uns são auto explicáveis, porém em sua maioria são ditos de forma simbólica, tirados de fábulas.
Há dois tipos de provérbio, os que fazem afirmações sobre a vida, como "O orgulho vem antes de uma queda", e os que generalizam experiências particulares, como "Você pode levar um cavalo até à água, mas não pode fazê-lo beber".
• Exemplo de provérbios
Enia lásán po ju igbe; enia rere han jú ojú.
(As pessoas más são comuns como os arbustos, mas as boas são raras como os olhos.)
Nwon ní kí arúgbó gbà omo pon ó ní sebí nwon mo pé on kò ni ehín. Nwon ní kí ó pa omo je ni?
(Pediram à velha para ajudar a carregar a criança às costas. Ela respondeu: Mas vocês sabem que não tenho dentes. Alguém lhe pediu para comer a criança?)
Eniti kò ní ìyàwó kò mbí àbikú.
(Aquele que não tem esposa não sofrerá a perda dos filhos.)
Oran se ni wò, kò a mo enití ó fe ni.
(Quando temos problemas é que sabemos quem gosta de nós.)
Orí tí yio je Ogedesùn kò ngbá. Bí nwon ngbé igba iyan bo a fun un, yio fo dandan ni.
(Se alguém está destinado a comer bananas, certamente as comerá. Se lhe trouxerem purê de cará a vasilha se quebrará, de qualquer forma, no caminho.)
Olówó pè ìlù o kò jó, ojo wo no o máa rí owó pè tire?
(O rico paga uma orquestra, e você não dança. Mas quando você terá dinheiro para pagar uma?)
A maioria dos provérbios iorubá fala das relações familiares, da posição de destaque dos mais velhos no grupo e das obrigações do indivíduo para com a sociedade.
Alguns costumes e o provérbio correspondente:
- A família é muito organizada, cada membro tendo seus direitos e deveres, até mesmo uma criança é tratada com respeito. Cada um tem seu lugar no grupo.
Owo omode kò tó pepe, t'àgbalágbà kò wo kèrègbè.
(A mão pequena da criança não pode alcançar a prateleira alta; a mão grande do adulto não pode penetrar no orifício estreito da cabaça.)
- Como qualquer sociedade, os iorubá não estão
livres dos maus sentimentos, como a inveja.
Opekete ndàgbà, inú adámo mbàje, mo dì baba tán inú mbí won.
(O crescimento da pequena palmeira evita que se lhe corte a palma. Eu me tornei pai e eles têm inveja.)
- Como a mortalidade infantil é muito grande, há um medo constante de que o filho morra jovem.
Omo kò áyolé, eni omo sin l'ó bi mo.
(Só o homem cujo filho sobrevive tem netos.)
- Uma criança é respeitada pela posição ou virtudes do pai.
Ola baba ní ímú ni yan gbendeke.
(É a honra do pai que permite ao filho caminhar com orgulho.)
- O amor e a devoção da mãe são muito exaltados.
Abiyamo se owo kòtu lù omo re.
(A mãe bate em seu filho com a mão em concha.)
- A posição mais importante é a dos velhos.
Àgbà kò sí ìlú bàje
(Quando não há velhos, a cidade se arruina.)
- Uma das virtudes mais importantes é o tato.
A kìí se ojú oníka mesan kà a.
(Nunca seja visto contando os dedos de um homem que só tem nove.)
- Os jovens devem ser humildes e admitir suas faltas.
Elejo kì ímo ejo ro l'ebi k'ó pe lorí ìkúnle.
(Aquele que admite suas faltas não as paga por muito tempo.)
- Os presentes devem ser aceitos sempre de bom grado.
Àwà-yó fi ara re gbodi.
(Aquele que diz: Não queremos mais comida! torna-se impopular.)
- A moderação é uma das virtudes mais elogiadas. Quem aspira alto demais é muito censurado.
Nwon fi o je oba, o nwe Àwúre; o fe je Olorun ni?
(Tendo-se tornado um rei você fica orgulhoso. Você quer tornar-se Deus?)
- Visão é outra qualidade elogiada. Os provérbios criticam aqueles que não podem prever as conseqüências de suas ações.
Obe nké ilé ara re ó ní oùn mba àko je.
(A faca está destruindo sua própria casa, e você pensa que está simplesmente cortando um telhado velho.)



Exemplos de Provérbios Africanos:

"O tolo têm sede no meio de água." 

"Uma mentira estraga mil verdades."

"O coração do homem sábio encontra-se quieto como a água límpida."

"Até que os leões tenham as suas histórias, os contos de caça sempre glorificarão o caçador."

"Depois de uma ação tola vem o remorso."

"É a água calma e silenciosa que afoga um homem."

"Um inimigo inteligente é melhor que um amigo estúpido."

"Quando o rato ri do gato há um buraco perto."

"Se você está construindo uma casa e um prego quebra, você deixa de construir, ou você muda o prego?"

"Para quem não sabe, um jardim é uma floresta."

"Uma vaca tem que pastar aonde está amarrada."

"Como a ferida inflama o dedo, o pensamento inflama a mente."

"Quem casa com a beleza casa-se com um problema."


"Quando não existem inimigos interiores
Os inimigos exteriores não nos podem ferir."

 

Fonte: CULTURA IORUBÁ - Costumes e Tradições
Maria Inez Couto de Almeida - Ifatosin

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Ìgbá — A utilização da cabaça ritualística

 

A cabaça é um fruto vegetal com larga utilização no Candomblé. É o fruto da cabaceira. Inteira, é denominada cabaça; cortada, é cuia ou coité; e as maiorias são denominadas cumbucas.

Nos ritos do Candomblé, sua utilização é ampla, tomando nomes diferentes de acordo com o seu uso, ou pela forma como é cortada. A cabaça inteira é denominada Àkèrègbè, e a cortada em forma de cuia toma o nome de Ìgbá. 

Cortada em forma de prato é o Ìgbáje, ou seja, o recipiente para a comida. Cortada acima do meio, forma uma vasilha com tampa, tomando o nome de Ìgbase, ou cuia do Àse, e é utilizada para colocar os símbolos do poder após a obrigação de sete anos de uma Ìyàwó, como a tesoura, navalha, búzios, contas, folhas, etc. que permitirão à pessoa ter o seu próprio Candomblé. 

Cabaças minúsculas são colocadas no Sàsàrà de Omolu, como depósito de seus remédios. No Ógó de Èsù, uma representação do fato masculino, as cabaças representam os testículos. Usa-se uma das partes da cabaça cortada ao meio, e colocada na cabeça das pessoas a serem iniciadas e que não podem ser raspadas por serem Àbìkú, para nela serem feitas as obrigações necessárias. 

 

Com o corte ao comprido, torna-se uma vasilha com um cabo, chamada de cuia do Ìpàdé e serve para colher o material de oferecimento ou para colher as águas do banho de folhas maceradas. Inteira e revestida de uma rede de malha será o Agbè, instrumento musical usado pelos Ogans, durante os toques e cânticos. 

 

Uma cabaça com o pescoço comprido em forma de chocalho é agitada com as suas sementes, fazendo assim o som do ré, forma reduzida de kèrè, instrumento por excelência de Sàngó. A cabaça inteira em tamanho grande substitui nos ritos de Àsèse, a cabeça de uma pessoa que morreu e que por alguns fatores não é possível realizar as obrigações de tirar o Òsu. Por fim, pode ser lembrado que a cabaça cortada  em  forma  de  vasilha  com  tampa  é  conhecida como  Ìgbádù,  a  cabaça  da existência e contém os símbolos dos quatro principais Odù: Éjì, Ogbè, Òyekú Méjì, Ìwòri Méjì e Òdí Méjì.

 



Fonte: Ìgbádù - A cabaça da existência

Mães de Santo - O matriarcado no Candomblé


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Mesmo antes de chegar ao Brasil como escravas, elas já conheciam a violência da guerra entre povos africanos vizinhos, que vendiam aos traficantes portugueses os prisioneiros vencidos. Mas elas nunca conheceram o medo. Na África, as mulheres yorubás participavam do conselho dos ministros, tinham organizações próprias e chegaram a liderar um intenso comércio que incluía rotas internacionais. Foi por isso que, na Bahia do início do século XIX, elas conseguiram o que parecia impossível: deram à luz uma organização religiosa que conciliava tradições de diferentes povos, resistindo à miséria da escravidão e à perseguição policial. No candomblé, com diplomacia, inteligência e fé, elas reuniram todos os elementos necessários para garantir ânimo e auto-estima ao seu povo. O título que receberam expressa bem o misto de liderança religiosa, chefia política e poder terapêutico que exercem: mães-de-santo.

Contam os antropólogos, como o professor e ogan suspenso do terreiro da Casa Branca Ordep Serra, que não há registros da existência efetiva do matriarcado em nenhuma sociedade. Ainda que tudo não passe de uma lenda criada por sonhadores, experiências como a do candomblé baiano deixam entrever como seria o mundo governado por mulheres. A liderança feminina nessa tradição religiosa, explica Maria Stella de Azevedo, a Mãe Stella de Oxóssi do Ilê Axé Opô Afonjá, vem de um simples fato: as pioneiras do candomblé, princesas africanas que vieram para a Bahia em fins do século XVIII, criaram o princípio de que as suas casas religiosas só poderiam ser lideradas por mulheres. Uma tradição mantida até hoje nos terreiros mais antigos, como a Casa Branca, o Alaketu, o Gantois, o Afonjá e o Cobre.
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Inteligência, energia, generosidade, iniciativa, conhecimento litúrgico. Cada um dá a sua lista de qualidades indispensáveis para que uma mulher se torne uma mãe-de-santo ou íyálorixá. O certo é que a tarefa é repleta de responsabilidades e sacrifícios, mas, se desempenhada com competência, traz a possibilidade de mudar a realidade das pessoas que a cercam. Não é à toa, então, que tantas mães e pais-de-santo, como Mãe Senhora, Mãe Aninha e Mãe Menininha do Gantois, gozam de grande prestígio, sendo recebidos e visitados por políticos, artistas e intelectuais de todo o mundo. A escravidão, a pobreza, a perseguição, as surras e as prisões não foram suficientes para diminuir a altivez, o espírito empreendedor e a sabedoria dessas pessoas.

Segundo Mãe Stella, todo terreiro é, em princípio, uma família, porque é uma família espiritual. Como elo maior que une a todos, a busca de contato com os elementos que nutrem a vida de todos os seres vivos: a força dos ventos, do fogo, das matas, da terra, das pedras, das águas. “Os orixás são simbolizados pelas forças naturais, que são coisas que não têm sexo. O vento tem sexo? Qual é o sexo do vento, apesar de simbolizar o orixá chamado Iansã? O espiritual não tem sexo, não tem raça, nada disso”, define Mãe Stella. Mas outros aspectos da vida também são contemplados na comunidade religiosa: apoio financeiro, moradia, criação de escolas, bibliotecas, museus, grupos de estudo, cursos profissionalizantes, assistência à saúde. Assim, aqueles que exercitam os seus direitos e deveres para com a comunidade podem se considerar membros de uma família e, de fato, filhos e irmãos-de-santo.

ACORDO DIPLOMÁTICO
Ketus, angolas, jejes, haussás, tapás, oyós, ijexás, baribas, efans, gruncis. Para quem chegava a Salvador no final do século XVIII e início do XIX, a impressão era uma só: uma cidade negra. Porque negros eram os homens e mulheres que se via pelas ruas, subindo e descendo as ladeiras, transportando mercadorias, vendendo alimentos, carregando água, pescando, cozinhando, erguendo paredes, fazendo a cidade funcionar. Mas faltava uma coisa essencial a essa multidão: união. Para entender a história do candomblé e dessas grandes mulheres é fundamental relembrar alguns episódios da história da África. Quem sabe contar bem o que aconteceu nessa época é o antropólogo Renato da Silveira, que estuda o tema da fundação do candomblé da Bahia há mais de 20 anos, desde quando defendeu uma tese de doutorado sobre o assunto.

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Os primeiros povos a virem para cá em grande quantidade foram os do grupo cultural banto, principalmente os angolas, que criaram os calundus, uma espécie de candomblé simplificado com duas ou três divindades. Aconteceu aí uma mistura grande com os índios, de quem herdaram o conhecimento sobre ervas, originando os candomblés de caboclo. Também vieram muitos outros povos, sendo que os jejes - ou ewés, de língua fon, do antigo Daomé - eram maioria em Salvador em meados do século XVIII. Angolas e jejes se davam bem e criaram uma espécie de cultura de rua afro-baiana com contribuições de ambas as partes. Uma característica importante das expressões religiosas desses precursores, principalmente dos calundus, era a assistência médica que prestavam à população, acrescenta Silveira.
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Mãe Senhora


No final do século XVIII, os povos nagôs-yorubás, do grupo lingüístico sudanês, começam a chegar em massa na Bahia. O povo que iria criar aqui a religião que conhecemos hoje como candomblé, incluindo heranças jejes, angolas, mas principalmente o legado dos reinos que compunham o que se chama de Império de Oyó ou país yorubá: os ijexá, que cultuavam o rio Oxum; os ketu, terra de Oxossi; os aon efan - dos orixás do branco, como Oxalá; os oyós - de Xangô e Iansã e representantes de outros reinos. Segundo Renato da Silveira, o Império de Oyó, que começou a nascer antes do ano mil e teve como primeira cidade Ifé, deve ter chegado a ter oito milhões de habitantes. Suas maiores cidades, entre sete e dez, tinham cerca de 40 a 50 mil habitantes, “o mesmo que cidades européias desse período”, compara.
Mas o grande império, que tinha conquistado e subjugado vários povos, um dia começou a ruir: era a guerra civil. “Até 1820 e 1830 eram os yorubás que vendiam escravos haussás, tapás, baribas: os povos do norte. Depois, a situação se inverte e os comerciantes muçulmanos é que começam a vender os yorubás. Os senhores de Ibadan e Abeokutá, comprometidos com o tráfico, começam a atacar os vizinhos e os daomeanos também se aproveitam. Com a desagregação do Império de Oyó, criam-se bandos armados que atacam indiscriminadamente e começam a vender escravos”, conta o antropólogo. Começam a chegar à Bahia, então, cidadãos yorubás de todos os tipos, inclusive membros de famílias reais, sacerdotes e sacerdotisas. Entre 1830 e 1835 acontece a queda definitiva da capital: Oyó é invadida e saqueada pelos muçulmanos do norte. No mesmo período, na Bahia, tendo à frente uma Iyá Nassô - sacerdotisa de Xangô na corte de Oyó - funda-se o candomblé da Barroquinha. Do outro lado do Atlântico, renasce a tradição.
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Igreja da Barroquinha


A pantanosa Barroquinha era um bairro de negros, onde a igreja - atualmente em ruínas - desempenhou um papel estratégico, de apoio e disfarce para a fundação do candomblé. Desde 1764, tinha se instalado lá uma associação de escravos libertos, a Irmandade de Bom Jesus dos Martírios, que anos mais tarde iria arrendar o terreno nos fundos, onde funcionou o candomblé. Os dados sobre esse período não são exatos, os pesquisadores precisam cruzar tradições orais mantidas nos terreiros com documentos de polícia e relatos da época. Como diz o professor Ordep Serra, as variações sobre a história do candomblé são normais, “como as várias versões do Evangelho”. Seguiremos aqui a proposta cronológica de Renato da Silveira, que em breve estará num livro produzido pelo Terreiro da Casa Branca.
Primeiro, por volta de 1790, teria sido fundado por membros da família Arô - uma das cinco famílias reais do reino de Ketu - o culto a Odé (um tipo de Oxossi). Datam dessa época os ataques a Ketu e a chegada na Bahia das princesas gêmeas da família Arô, capturadas e vendidas por daomeanos com apenas nove anos de idade. O culto funcionava numa residência na Rua da Lama, atrás da Igreja da Barroquinha, onde hoje fica a Rua Visconde de Itaparica, tendo à frente a africana Iyá Adetá. Depois dela veio a africana Iyá Akalá, introduzindo o culto a Airá - um tipo de Xangô que se veste todo de branco (alá significa pano branco, lembra Silveira). Possivelmente nessa época se deu a saída dos Arô, que foram para o Luis Anselmo e fundaram o candomblé do Alaketu, conduzido nas últimas décadas pela yalorixá Olga do Alaketu. Os resquícios desses primeiros tempos ainda estão vivos: no Terreiro da Casa Branca, a festa de Xangô é chamada pelos filhos-de-santo de “Festa de Airá” e, também nesse terreiro e herdeiros de sua tradição, a saudação a Oxóssi ainda relembra os pioneiros: “Okê Odé, okê Arô”, conta o pesquisador.
A terceira grande sacerdotisa do candomblé da Barroquinha foi uma Iyá Nassô que, acreditam as pessoas dos terreiros, antropólogos e historiadores, não veio para a Bahia como escrava, mas sim intencionalmente, para reestruturar o culto a Xangô e tentar reorganizar o seu povo nesse momento de desagregação total dos yorubás. Ela estava acompanhada de outras pessoas do alto escalão de Oyó, como alguns Essas - um título no conselho de ministro do reino de Ketu - Babá Axipá e Rodolpho Martins de Andrade, também conhecido como Bamboxê Obitikô, entre outros. Há quem diga que a mãe de Iyá Nassô já tinha sido escrava na Bahia, conseguiu a alforria e retornou para a África e que, como muitas outras mães-de-santo baianas, Iyá Nassô era comerciante e morava no centro histórico.
Em meados do século XIX, a prosperidade do candomblé e da Irmandade de Bom Jesus dos Martírios foi interrompida por mudanças externas. Quando Francisco Gonçalves Martins assume como presidente da província, “de 1848 a 1852, um governador de extrema direita, antiafricano feroz”, segundo Silveira, inicia-se a urbanização da Barroquinha e o terreiro é expulso de lá. Na época da saída da Barroquinha e da sucessão de Iyá Nassô, houve instabilidade, várias mudanças de endereço, mas o Ilê Axé Iyá Nassô Oká conseguiu encontrar o local adequado para plantar os seus axés e fundar uma nova sede. O lugar escolhido foi o antigo Caminho do Rio Vermelho de Baixo, atual Avenida Vasco da Gama, onde até hoje funciona o Terreiro da Casa Branca. Um documento que já comprova a localização neste novo endereço, infelizmente, é um registro de polícia, dando conta da prisão de várias pessoas num candomblé no Engenho Velho, em 1855. Quem sucedeu Iyá Nassô foi Marcelina Obatossi, que faleceu em 1885, sendo substituída por Maria Júlia Figueiredo. Em que período exatamente começam a ser fundadas outras casas, por dissidências da primeira, e se foi Iyá Nassô ou Obatossi quem realizou a mudança de endereço, é difícil precisar com exatidão, mas certamente foi ainda no século XIX que tudo aconteceu.

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A essa altura, entretanto, ninguém mais podia deter essas mulheres. Elas já tinham feito o principal: criado uma religião que era um poderoso acordo diplomático entre povos distintos. No xirê - a roda dos orixás - inventado na Barroquinha, dançam juntos a Oxum e o Logunedé dos ijexá, o Xangô e a Iansã dos oyós, o Oxóssi dos ketus, o Oxalá, Oxalufã e Oxaguiã dos aon efan. Nas indumentárias e vocabulários, aparecem heranças jejes e angolas. Mas, ao contrário do que temia o Conde dos Arcos, quando os africanos esqueceram os velhos ódios étnicos que os separaram no passado, não se abateu um grande perigo sobre a Bahia. Na verdade, começou aí uma luta longa e pacífica pela tolerância religiosa, pelo convívio harmônico, que levou uma mãe-de-santo baiana a conversar com o presidente da República, pedindo respeito às crenças do seu povo. A liberdade de culto chegou definitivamente à Bahia muito tempo depois, através de um decreto governamental assinado em 17 de janeiro de 1976. Somente a partir daí, os terreiros não precisaram mais do registro, pagamento de taxa e licença da polícia para exercer suas atividades.
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MATRIARCADO

Em todas as famílias, quando os filhos crescem e já são fortes o bastante, é natural que saiam de casa e trilhem seu próprio caminho. No candomblé não é diferente. Foi o que aconteceu com Maria Júlia da Conceição Nazaré quando ela sentiu que podia criar a sua própria casa religiosa, fundada num terreno dentro da propriedade de um francês chamado Gantois. Alguns acreditam que essa saída se deu na época da sucessão de Iyá Nassô, mas as tradições orais apontam mais para o afastamento no período da sucessão de Obatossi, quando foi escolhida Maria Júlia Figueiredo para ser a nova mãe-de-santo da Casa Branca. Começa aí a frutífera e numerosa descendência desse terreiro.
“De um modo ou de outro todos os candomblés saíram da Casa Branca”, afirma o antropólogo Ordep Serra. Como “grande mãe” dos candomblés baianos, essa casa religiosa cultiva com muito rigor suas tradições, mantendo, por exemplo, o princípio de não iniciar filhos-de-santo do sexo masculino até hoje. Depois de Marcelina Obatossi e Maria Júlia Figueiredo, estiveram à frente da casa Ursulina Maria de Figueiredo (Mãe Sussu), Maximiana Maria da Conceição (Tia Massi), Deolinda dos Santos (Oké), Marieta e agora a sua filha, Altamira Cecília dos Santos (Mãe Tatá).
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Tia Massi

Na sua época, Maria Júlia Figueiredo chegou a ser uma mulher de grande influência, principalmente entre a população negra da cidade. Esse poder fica nítido pelos títulos que ela possuía, resgatando organizações africanas onde as mulheres exerciam papéis importantes. Maria Júlia era uma Erulu, cargo máximo das mulheres na Sociedade Ogboni, que segundo Renato da Silveira funcionava como um poder moderador da sociedade civil yorubá. Maria Júlia era também uma iyalodé, o cargo máximo de uma mulher numa importante associação feminina que existiu nos reinos de Ibadan e Abeokutá. Mas isso não é tudo, ela também era a provedora-mor da Devoção da Nossa Senhora da Boa Morte, fundada na Irmandade dos Martírios, e a yalaxé da Gueledé, um culto feminino às grandes mães do qual ainda se encontram resquícios nos terreiros mais antigos.
Conseguir falar com uma yalorixá da Casa Branca é uma tarefa árdua. Discretas ou desconfiadas? Não é possível saber, mas, certamente, como pioneiros que foram, os membros dessa casa conheceram muitos períodos difíceis e enfrentaram perseguições, o que pode explicar a opção pelo silêncio. Quem olha para o terreiro hoje em dia, num lugar acessível, terá dificuldades para entender o que essas mulheres enfrentaram para manter a sua roça. Por volta de 1938, quando esteve no Brasil, a antropóloga Ruth Landes foi levada até lá pelo etnógrafo Edison Carneiro, para uma festa de Oxalá. Em seu livro “A Cidade das Mulheres” ela narra o que viu: “O lugar ainda parecia uma mata e, quando o bonde parou ao pé do alto morro onde ficava o templo, pude apenas ver árvores imensas que se elevavam contra o céu claro”. Uma das histórias mais impressionantes sobre a violência contra os candomblés baianos é a da mãe-de-santo Nicácia, presa pelo Conde da Ponte, apesar de prestígio que possuía, de já ser uma senhora e do defeito físico na perna. No trajeto do Cabula até a prisão, onde hoje é a Câmara Municipal, ela foi acompanhada por uma multidão. Nessa época, ter prestígio entre alguns brancos podia ser motivo suficiente para a perseguição.
“Ela é muito discreta, fala pouquíssimo e é de uma sutileza e inteligência incomuns”, conta Ordep Serra, sobre a atual yalorixá da Casa Branca - Mãe Tatá - e exemplifica: “Você pode entrar e sair de uma festa sem perceber que ela é a mãe-de-santo. Ela é simples e tranqüila”. A segunda mulher mais importante num terreiro é a mãe pequena e muitas delas tornaram-se depois mães-de-santo. Em seu livro, Ruth Landes deixou um retrato vívido de uma das mães pequenas da Casa Branca, Mãe Luzia: uma mulher enorme, vigorosa e confiante, que conseguiu estabilidade financeira vendendo carnes no mercado, além de adornos e objetos do culto. Quando Landes a conheceu, Luzia tinha recentemente se tornado viúva, depois de um período longo de vida a dois. Filhos, ela só teve os de santo, o que já significava muito trabalho, como lhe contou Edison Carneiro: “Juntamente com a mãe, ela toma todas as decisões de importância para o templo. Além disso, ouve as lamúrias de inúmeros clientes e resolve os seus casos. Eles lhe pagam pelo serviço, mas ela destina boa parte do dinheiro para a manutenção do templo”, registrou Landes.
Pessoas de todas as casas sempre se referem com muito respeito à Casa Branca, inclusive porque foi ali que muitos se iniciaram. Em 1982, veio o reconhecimento - tardio, mas importante - com o tombamento da Casa Branca como patrimônio da humanidade. No dia da inauguração da Praça de Oxum, representantes de outros terreiros fizeram questão de comparecer e prestar as suas homenagens ao Ilê Axé Iyá Nassô Oká, também conhecido como Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge.
Mãe Menininha. O terreiro do Gantois dispensa apresentações. Ele está entre as “grandes casas, as casas importantíssimas”, como diz o ensaísta Waldeloir Rego, que se define como um estudioso de assuntos antropológicos. Ele acrescenta ainda: “Essas casas não são grandes e importantes porque são do tamanho de um supermercado, mas porque tiveram uma linhagem importante de descendentes”. Desde as pioneiras, Maria Júlia da Conceição Nazaré e depois sua filha, Pulchéria da Conceição Nazaré, o Gantois sempre desfrutou de muito prestígio. Duas marcas dessa casa, especialmente desenvolvidas por Maria Escolástica da Conceição Nazaré ou Mãe Menininha - sobrinha e substituta de Pulchéria - são a diplomacia e beleza dos seus rituais, além da seriedade e conhecimento litúrgico, o que sempre lhe garantiu uma multidão de filhos-de-santo, parceiros e admiradores.
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A família de Maria Júlia da Conceição Nazaré, ou Omoniquê, veio de Abeokutá. Seu pai, Okarindé, era uma espécie de secretário do rei. Quando Conceição decidiu fundar a sua própria casa, saindo do Ilê Iyá Nassô Oká, manteve a restrição a que os homens ocupassem cargo de chefia e acrescentou o critério do parentesco na sucessão. Sobre Pulchéria, filha de Oxóssi, conta-se que teve um desempenho tão marcante, que corruptelas de Gantois - canzuá e ganzuá - se tornaram sinônimo de candomblé. No tempo de Pulchéria, um dos freqüentadores da casa era o médico Nina Rodrigues, pioneiro nos estudos sobre a cultura negra no Brasil. Mãe Menininha também conquistou muito respeito, tanto entre o povo, quanto entre figuras ilustres. Era procurada e admirada por pessoas como os médicos João Mendonça e Hosannah de Oliveira, artistas famosos, como Caetano Veloso e Maria Bethania, além de políticos e intelectuais.
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Mãe Menininha do Gantois


Mãe Menininha ainda não tinha um ano de idade quando foi iniciada e também assumiu cedo a chefia da casa, com apenas 28 anos. Quem a conheceu, garante que conhecimento, bondade, feminilidade e rigor reuniam-se nessa mulher com o mesmo equilíbrio. Ela gostava de definir o Gantois como uma casa de caridade e, de fato, a busca de auxílio e orientação sempre foram motivos que levaram muitas pessoas até lá. Mas outros atributos também contribuíram para a fama do Gantois e de Mãe Menininha. “Ela sempre foi amiga de todo mundo. Educadíssima, tratava todo mundo bem. Parecia até que tinha passado por uma escola pra aprender isso, mas ela nasceu assim. Era uma pessoa diplomática. Por exemplo, se ela estava fazendo o jogo pra você e saía alguma coisa que você não ia gostar de ouvir, ela se via doida. Fazia uma volta danada, pra dizer só mais ou menos, só sugerir a coisa que você não ia gostar”, conta Waldeloir Rego, também conhecido como “pai dos colares”, pelas jóias e colares de iniciação que já fez.

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Mãe Aninha
SUPERANDO A SI MESMO                 Ninguém entra para a religião dos orixás pensando em ser mãe-de-santo, pelo menos as pessoas sensatas, explica Mãe Stella. “Porque aí não é algo espiritual, passa a ser uma coisa de superação. No candomblé, a gente não tem que superar o outro, tem que superar a si próprio”, defende ela. E foi o que aconteceu com as líderes de duas das mais importantes e antigas casas da Bahia - o Afonjá e o Cobre - num cotidiano de trabalho, esforço e dedicação contínua ao sacerdócio, porque os ritos tradicionais que se praticam nessas casas são exigentes e, por isso mesmo, fortalecem e educam aqueles que os praticam. No caso do Cobre, que chegou a permanecer fechado por alguns anos, a retomada do funcionamento da casa foi uma convocação espiritual. Quem mais lucra com o trabalho do Afonjá e do Cobre é a própria cidade, que encontra nesses lugares fontes de conhecimento e proteção.
Eugênia Anna dos Santos fez uma opção ousada: comprou um terreno para a sua roça num lugar distante e ermo, o Alto do São Gonçalo do Retiro. Para chegar lá, era preciso subir uma ladeira íngreme que o mato praticamente dominava. Mas, em 1910, todos estavam contentes. Depois de passar por vários endereços, o grupo estava finalmente na sua casa definitiva: o Ilê Axé Opô Afonjá. A fundadora do Afonjá, mais conhecida como Mãe Aninha ou Obá Biyi, sabia o que estava fazendo. Filha de um casal de africanos grunci ela foi iniciada pelos nagôs da Casa Branca. Desde quando deixou o antigo terreiro, Aninha sempre buscou congregar boas colaborações e estabelecer parcerias, inclusive, com muitos homens, como o lendário Miguel Sant’Anna, Martiniano Eliseu do Bonfim - que morou muitos anos na Nigéria e a auxiliou a resgatar aqui os 12 Obás de Xangô, os ministros do rei -, ou os intelectuais Donald Pierson, Jorge Amado e Edison Carneiro - que ela escondeu da ditadura de Vargas. O mesmo Getúlio Vargas com quem Aninha conversou quando esteve na antiga capital federal, Rio de Janeiro, em busca de apoio para a sua religião. Como deputado, o seu amigo Jorge Amado conseguiu aprovar uma lei que estabelecia a liberdade de culto no país, que só foi se tornar efetiva na Bahia somente muitos anos depois. No governo de Roberto Santos, em 17 de janeiro de 1976, foi assinado um novo decreto eliminando a necessidade de registro, pagamento de taxa e licença da polícia para o funcionamento dos terreiros.
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Martiniano Eliseu do Bonfim

Nessa época, em que o risco de ter a sua casa religiosa invadida pela polícia estava sempre presente, conseguir simpatizantes e boas amizades era uma necessidade. Os contatos com a Igreja Católica também eram freqüentes, como explica Mãe Stella: “Mãe Aninha se integrou na Igreja Católica para ter status, porque quem mandava era o branco e essa era a religião do branco”. Foi na sua época também que se criou a Sociedade Civil Cruz Santa Opô Afonjá. Até os meios acadêmicos se curvaram à sabedoria e força dessa mulher, dona de uma quitanda. Em 1936, ela participou do II Congresso Afro-Brasileiro com uma comunicação sobre alimentação litúrgica. Com a morte de Mãe Aninha, assumiu Mãe Bada, de 1939 a 1941 e, então, chegou a vez de Mãe Senhora, a poderosa filha de Oxum e bisneta de Marcelina Obatossi, que seguiu à frente do Afonjá de 1942 a 1967.
Vigorosa e de personalidade forte, ao lado de Menininha do Gantois, Senhora foi uma das mães-de-santo baianas que mais homenagens recebeu em vida e que mais longe levou a sua tradição religiosa. Em 1965, ela foi ao Rio de Janeiro receber o título de Mãe Preta do Ano, no Maracanã. Em Madureira, existe um busto em sua homenagem. Com a ajuda do fotógrafo e antropólogo Pierre Verger, ela restabeleceu importantes contatos com a África, mantidos por seu filho, Mestre Didi. De lá, recebeu o título de Iya Nassô.

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Mãe Senhora

Como todos os antigos, Mãe Senhora brigava feio quando as regras litúrgicas não eram respeitadas, mas logo fazia um carinho no faltoso assustado, como conta Waldeloir Rego, iniciado por ela em 1964. Waldeloir lembra de um episódio com Mãe Senhora que define bem o poder que lhe era atribuído e a seriedade com que ela o exercia: “Quando ela estava no Rio, chegou uma senhora de família tradicional para vê-la, dizendo: ‘’Oh, minha mãe, eu quero me ver livre do meu marido, mate ele’. Aí, ela disse pra moça: ‘Minha filha, eu não posso fazer isso, porque eu só vim ao mundo pra aconselhar e pra botar a mão’, que é iniciar os filhos de santo”.
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Mãe Ondina

Poucos dias antes de morrer, em janeiro de 1938, Mãe Aninha conheceu uma garotinha desconfiada que, nenhuma das duas podia imaginar, se tornaria anos mais tarde yalorixá do Afonjá: Stella Azevedo. Depois de Mãe Senhora, veio Mãe Ondina, que cuidou do axé do São Gonçalo até 1975, quando então assumiu Stella de Oxossi. Se nesses anos todos a roça de Obá Biyi sempre prosperou, sob o comando de Mãe Stella as coisas seguiram com uma rapidez ainda maior. A enfermeira que estudou em boas escolas, aprendeu francês e piano, foi funcionária pública e dona de uma loja de artesanato, transformou o Afonjá, definitivamente, numa universidade da cultura afro-baiana. Os filhos-de-santo e amigos da casa criaram o Museu Ilé Olun Lailai, uma biblioteca, oficinas, grupos de estudo, eventos culturais e a menina dos olhos de Mãe Stella: a escolinha que atende a cerca de 300 crianças. Novas casas para os orixás foram construídas, as antigas foram reformadas e os contatos com o mundo acadêmico se intensificaram: Mãe Stella é convidada para fazer conferências em universidades inglesas e americanas, representou o candomblé no ECO-92, promovido pela ONU e escreveu livros.

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Mãe Stella

Valnísia de Airá nunca tinha imaginado assumir um cargo como o de mãe-de-santo: “Eu nem imaginava, não sabia, nunca ninguém tinha me dito nada que me deixasse perceber”. Na verdade, o Ilê Obá do Cobre, terreiro fundado no Engenho Velho da Federação por sua bisavó, Sinha Flaviana, já nem funcionava plenamente e Mãe Val tinha sido iniciada na Casa Branca, aos 16 anos: “Esse terreiro veio da Barroquinha há mais de um século, aqui pro Engenho Velho, segundo minha tia Edite, neta de Sinha Flaviana”, conta ela, revelando que o Cobre, assim como o Afonjá e o Gantois, é também descendente direto do primeiro terreiro baiano. Depois de Sinha Flaviana, quem ficou à frente do Cobre foi Maria Eugênia, avó de Mãe Val, que era iniciada, mas não “feita de santo”: “Ela continuou tomando conta dos orixás e preservou a casa”, explica ela.
Com a morte de Maria Eugênia, o terreiro ficou cada vez mais abandonado. “Quando cheguei aqui, encontrei a casa no chão”, relembra Mãe Val. Ela explica que não se arrepende de ter seguido este caminho, apesar de não ter sido uma escolha, “mas existia uma força maior, a do orixá abandonado, esperando alguém da família pra levantar o axé”. Esta cobrança, Valnísia e sua família estavam sentindo na pele: “Minha mãe foi desenganada pelo médicos, a família toda estava com problemas, muito desemprego. Cada dia que passava, as coisas piorando. Aí eu vinha aqui, sozinha, afastava as teias de aranha, acendia uma vela e pedia a Xangô pra ter paciência. Eu só tinha vinte e poucos anos, não podia assumir. Mas um dia eu fiz uma promessa, que se minha mãe ficasse boa, eu vinha tomar conta dele. Não disse que ia ser mãe-de-santo, disse que ia zelar por ele. Só que em uma semana minha mãe ficou boa e está aí até hoje. Então reunimos a família toda pra dar comida a Xangô. Foi muito difícil, mas todos ajudaram, muitas pessoas da Casa Branca, Dona Tatá. Depois desse amalá, tudo melhorou, as coisas começaram a caminhar. Isso há uns 15 anos atrás”. A necessidade de cercar o local, que estava servindo como passagem para marginais e a necessidade de ocupá-lo, fizeram o resto e o Ilê Obá do Cobre cresce a cada dia.
Além do trabalho religioso, que tem tornado Mãe Val cada vez mais conhecida, outra marca do seu trabalho é a atuação social. No começo, eram sessões educativas, apresentações de filmes, discussões sobre AIDS. De quatro anos para cá, com as parcerias com a Fundação Palmares e a Capacitação Solidária, o trabalho se intensificou. Como o espaço é pequeno, qualquer lugar serve para as aulas dos cursos profissionalizantes para adolescentes, informática, telessala, alfabetização de crianças e de adultos, percussão, teatro: na sala, no barracão, ao ar livre, em frente à casa dos orixás.

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Quarto de Sángò no Ilè Asè Opo Afonjá

Assim como a Casa Branca, o Gantois, o Afonjá e o Cobre, existem centenas de outras grandes e pequenas casas religiosas em todo o Brasil que mantém a tradição religiosa africana e, ao mesmo tempo, garantem amparo para um enorme contingente de pessoas de todas as classes e raças. Terreiros como o Alaketu, o Bogum, de tradição jeje, no Engenho Velho da Federação, por onde passaram grandes yalorixás como Emiliana e Valentina Maria dos Anjos, a Mãe Ruinhó. A praça no fim de linha do bairro tem hoje o seu nome e um busto em sua homenagem. Mulheres como Mirinha do Portão, Mãe Elza de Oxum e tantas outras. Há também os terreiros criados por homens, mas que em alguns períodos foram liderados por mulheres, como Simpliciana de Ogum, no Ilê Axé Oxumarê, que se recusou a receber dinheiro para preparar um banquete especialmente para o presidente Getúlio Vargas, curioso sobre a comida baiana. Homens e mulheres que, como dizia Edison Carneiro, governam pela influência de sua força moral. Se, infelizmente, não é possível contar a história de todos eles, que pelo menos fique registrado que cada uma dessas casas participa, ao seu modo, de uma das mais significativas e inspiradoras organizações que os negros e mestiços já conseguiram criar no Brasil: o candomblé.
 
Fonte: Pesquisa Tiago Pais
por Agnes Mariano