segunda-feira, 23 de maio de 2011

Uma Homenagem Especial




Atualmente estou com 42 anos de idade, e me considero uma pessoa um tanto quanto privilegiada, pois tive oportunidade de conhecer no decorrer da minha vida, pessoas de muita fé, com uma religiosidade inabalável, mas a maior destas pessoas, se chamava Iracema Magalhães da Silva, a Ìyálòrisá Iracema de Òsun, minha avó carnal.


Com a luz da concepção religiosa dos yorùbás, minha avó cumpriu sua missão no àiyé por completo, afinal, deixou-nos agbalágbà (anciã). Cumpriu todas as etapas de sua vida, nasceu, cresceu, teve filhos, netos, bisnetos e tataranetos e se foi quase que centenária.  Vejo-me como uma pessoa que fora escolhida, no entanto, creio que as pessoas são escolhidas em função de sua ancestralidade que está no òrun, mas tenho plena convicção que de onde ela está, certamente olha por mim e pelos seus familiares.

Lembro-me ainda muito pequena, que pude testemunhar, embora não compreendesse a dimensão daquilo tudo, o quanto de satisfação tinha esta senhora, ao dedicar a sua vida, a serviço dos Òrisá. Muitas vezes, ao fazer-lhe visitas, encontrava a minha avó incorporada com as suas entidades, prestando caridade a quem fosse procurá-la. Eu não entendia direito tamanha dedicação, mas de uma certa maneira, aquilo já chamava a minha atenção, e confesso que sentia orgulho de minha vózinha.

O tempo foi passando, e minha avó envelhecendo, mas totalmente firme na sua fé e no seu propósito. 

Era uma velhinha muito simpática, alegre e cheia de vida! O que será que a fazia tão feliz? O que tinha ali de tão importante, que a fizesse superar as dores insuportáveis, causada pôr uma artrose crônica? Que amor ao sagrado era esse, que bastava aparecer uma única pessoa pedindo  o seu socorro espiritual, para que ela se colocasse rapidamente à disposição? Que loucura! No auge dos meus 15 anos, por mais que eu tentasse compreender, seria praticamente impossível!

Minha avó contava que entrou para a umbanda aos 08 anos de idade, enfrentou grandiosos problemas, e um dos maiores desafios, foi a não aceitação da família (meus bisavós), por serem católicos fervorosos! Viveu toda essa loucura de não poder professar a sua religião com liberdade... foi perseguida, tendo seu barracão por diversas vezes invadido e até fechado pôr autoridades policiais, mas não esmorecia... não desistia...seguia na sua verdade. Iniciou-se no Candomblé aos 14 anos, para o òrìsá Òsún, iniciada por Tatá Fomotinho (não posso confirmar a autenticidade dessa informação, pois não há nenhum registro, somente a palavra de minha avó). E com sua casa aberta há anos, tinha o respeito de toda comunidade local.  Lembro-me também que ao chegar para uma festa que teria no barracão, ela me recebeu com a alegria de sempre, e diante de alguns convidados que estavam sentados dentro do barracão junto a ela, falou em tom de brincadeira: “Essa daqui será a minha herdeira...”. Naquele momento,  eu levei o seu comentário, como uma brincadeira mesmo, mas hoje penso, acho que minha vovó registrou a sua vontade no mundo espiritual.

Comecei a apresentar problemas espirituais aos 15 anos, e embora sentisse uma certa atração pelo Culto, morria de medo de um envolvimento maior. Fui iniciada quase 08 anos depois, coincidentemente para o Òrisá Òsún, e minha vovó nesta época já estava com seus 87 anos de idade, e embora eu não tenha sido iniciada dentro do seu asé, participava sempre que podia das festas e eventos do barracão, onde ela fazia questão de cumprir. Em virtude do avançado da sua idade, e as dificuldades físicas que a velhice trás, os filhos de santo foram se dispersando, ficando os que tinham apenas laços familiares. Apesar das dificuldades da idade, da evasão dos filhos de santo,  dava um gosto danado em ver... aquela velhinha, que por muitas vezes, teve que descer as escadas carregada em uma cadeira para chegar ao barracão, toda “montadinha”, com seu camisú, bata e fios de conta, numa alegria contagiante, e eu percebia que aquilo realmente fazia a minha avó feliz!
E eu... a admirava ainda mais por isso, porém, era uma recente iniciada, ainda vacilando na minha fé, e com certeza ali naquele momento, eu ainda não a entendia como a entendo agora. Ela realmente possuía uma força espiritual incrível e avassaladora!


Minha avó aos 90 anos de idade, foi separada daquilo que ela mais amava: a sua casa de santo. A sua idade inspirava maiores cuidados. Mesmo afastada, os momentos de lucidez eram dedicados as suas cantorias noturnas,  reverenciando à sua maneira, os seus òrísás e guias.

No dia 30 de outubro de 2000, eu posso dizer que eu tive a primeira grande perda da minha vida. Aos 94 anos de idade, um mês antes de completar 95 anos, minha avó retorna ao òrun. Minha avó faleceu de velhice, pois tirando a artrose crônica, ela continuou envelhecendo com saúde, terminando a sua vida cercada de amor e cuidados pôr seus filhos e netos, e eu considero isso, como um grande presente dos Òrisás,  a uma pessoa que se dedicou de corpo e alma em serví-los. 

Enfim... a vida faz grandes surpresas... Quando minha avó faleceu, eu havia acabado de completar 07 anos de iniciada, e estava às vésperas para tomar o meu orò de 07 anos, o que o fiz em março/2001. E... minha mãe Òsún, escolheu-me para levar essa missão adiante. Sinto-me distante em atingir o patamar de "Dona Iracema", o peso da responsabilidade é grande, mas uma coisa é certa, amo aquele asè tanto quanto ela amou, bem como os Òrisás, e quero morrer velhinha, toda “montada”, marcando no agogô o compasso das cantigas, assim como ela fazia.

Arrependo-me de ter perdido algumas oportunidades de estar com ela mais vezes, para sugar o acervo incrível de sabedoria, humildade e dedicação,  que os seus oitenta e poucos anos dedicados ao santo, lhe deram de bagagem. 

Peço a minha mãe Òsún, que minha avó esteja realmente num lugar especial, e que me dê forças para continuar com dignidade, humildade e discernimento essa sua missão tão especial!


Mo jùbá!



Poema da Ancestralidade

"Ouça no vento 
O soluço do arbusto:
É o sopro dos antepassados.
Nossos mortos não partiram.
Estão na densa sombra.


Os mortos não estão sobre a terra.
Estão na árvore que se agita,
Na madeira que geme,
Estão na água que flui,
Na água que dorme,
Estão na cabana, na multidão;


Os mortos não morreram...
Nossos mortos não partiram:
Estão no ventre da mulher
No vagido do bebê
E no tronco que queima.
Os mortos não estão sobre a terra:
Estão no fogo que se apaga,
Nas plantas que choram,
Na rocha que geme,
Estão na casa.


Nossos mortos não morreram :
E por isso que sem Passado, não temos Futuro e sem Asèsè não temos Continuidade..."
Fonte: http://bamgboseobtico.blogspot.com/

Um comentário:

  1. Que linda história de vida e de amor!
    Tenho uma grande admiração e respeito por quem se dedica a religião em nome do amor!
    Parabéns por ter encontrado este caminho de Luz e de Caridade!
    Beijinhos
    Li

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