Foto José Medeiros |
Um novo adepto do candomblé ou outra religião afro-brasileira tradicional que tenha nascido e sido criado fora dessa religião, na qual ele ingressa por escolha pessoal, não é caso raro. Desde que o candomblé se transformou numa religião aberta a todos, independentemente da origem racial, étnica, geográfica ou de classe social, grande parte dos seguidores, ou a maior parte em muitas regiões do Brasil, é de adesão recente, não tendo tido anteriormente, nem mesmo no âmbito familiar, maior contato com valores e modos de agir característicos dessa religião. Na maioria dos casos, aderir a uma religião também significa mudar muitas concepções sobre o mundo, a vida, a morte. O novo adepto do candomblé, ao freqüentar o terreiro, o templo, e participar das inúmeras atividades coletivas indispensáveis ao culto, logo se depara com uma nova maneira de considerar o tempo. Ele terá que ser ressocializado para poder conviver com coisas que, nos primeiros contatos, lhe parecerão estranhas e desconfortáveis. Ele tem de aprender que tudo tem sua hora, mas que essa hora não é simplesmente determinada pelo relógio e sim pelo cumprimento de determinadas tarefas, que podem ser completadas antes ou depois de outras, dependendo de certas ocorrências, entre as quais algumas imprevisíveis, o que pode adiantar ou atrasar toda a cadeia de atividades. Aliás, esses termos “atrasar” e “adiantar” são estranhos à situação que desejo considerar, pois no candomblé, como já disse, tudo tem seu tempo, e cada atividade se cumpre no tempo que for necessário. É a atividade que define o tempo e não o contrário.
As festas de candomblé, quando são realizadas as celebrações públicas de canto e dança, as chamadas cerimônias de barracão, durante as quais os orixás se manifestam por meio do transe ritual, são precedidas de uma série de ritos propiciatórios, que envolvem sacrifício de animais, preparo das carnes para o posterior banquete comunitário, fazimento das comidas rituais que são oferecidas aos orixás que estão sendo celebrados, cuidado com os membros da comunidade que estão recolhidos na clausura para o cumprimento de obrigações iniciáticas, preparação da festa pública e finalmente a realização da festa propriamente dita, ou seja, o chamado toque. Preparar o toque inclui cuidar das roupas, algumas costuradas especialmente para aquele dia, que devem ser lavadas, engomadas e passadas a ferro (é sempre uma enormidade de roupas para engomar e passar!); pôr em ordem os adereços, que devem ser limpos e polidos; preparar as comidas que serão servidas a todos os presentes e providenciar as bebidas; decorar o barracão, colhendo-se para isso as folhas e flores apropriadas etc. etc.
Num terreiro de candomblé, praticamente todos os membros da casa participam dos preparativos, sendo que muitos desempenham tarefas específicas de seus postos sacerdotais. Todos comem no terreiro, ali se banham e se vestem. Às vezes, dorme-se no terreiros noites seguidas, muitas mulheres fazendo-se acompanhar de filhos pequenos. É uma enormidade de coisas a fazer e de gente as fazendo. Há uma pauta a ser cumprida e horários mais ou menos previstos para cada atividade, como “ao nascer do sol”, “depois do almoço”, “de tarde”, “quando o sol esfriar”, “de tardinha”, “de noite”. Não é costume fazer referência e nem respeitar a hora marcada pelo relógio e muitos imprevistos podem acontecer. No terreiro, aliás, é comum tirar o relógio do pulso, pois não tem utilidade. Durante a matança, os orixás são consultados por meio do jogo oracular para se saber se estão satisfeitos com as oferendas, e podem pedir mais. De repente, então, é preciso parar tudo e sair para providenciar mais um cabrito, mais galinhas, mais frutas, ou seja lá o que for. Em qualquer dos momentos, orixás podem ser manifestar e será preciso cantar para eles, se não dançar com eles. Os orixás em transe podem, inclusive, impor alterações no ritual. Eles podem ficar muitas horas “em terra” enquanto todos os presentes lhes dão atenção e tudo o mais espera. Durante o toque, a grande cerimônia pública, a presença não prevista de orixás em transe implica alargamento do tempo cerimonial, uma vez que eles devem também ser vestidos e devem dançar. A chegada de dignitários de outros terreiros, com seus séquitos, obriga a homenagens adicionais e outras seqüências de canto e dança. Embora haja um roteiro mínimo, a festa não tem hora para acabar. Não se sabe exatamente o que vai acontecer no minuto seguinte, o planejamento é inviabilizado pela intervenção dos deuses.
Quando se vai ao terreiro, é aconselhável não marcar nenhum outro compromisso fora dali para o mesmo dia, pois não se sabe quando se pode ir embora, não se sabe quanto tempo vai durar a visita, a obrigação, a festa. Aliás, candomblé também não tem hora certa para começar. Começa quando tudo estiver “pronto”. Os convidados e simpatizantes vão chegando num horário mais ou menos previsto, mas podem esperar horas sentados. Então muitos preferem chegar bem tarde, o que pode acarretar novos atrasos. E não adianta reclamar, pois logo alguém dirá que “candomblé não tem hora”. Uma vez, depois de muita espera, perguntei a que horas iria o candomblé realmente começar. A resposta foi: “Depois que mãezinha (a mãe-de-santo) trocar de roupa.” Enfim, o tempo será sempre definido pela conclusão das tarefas consideradas necessárias no entender do grupo, a fórmula: “quando estiver pronto”.
Essa idéia de que o tempo está sujeito ao acontecer dos eventos e ao sabor da realização de tarefas necessárias pode ser observada no cotidiano dos terreiros também fora das festas. Pesquisadores que estão se iniciando em trabalho de campo espantam-se muito com a “falta de horário” das mães e pais-de-santo, tendo que esperar horas e horas, se não dias, para fazer uma entrevista que pensavam estar agendada para um horário bem determinado. Clientes que vão ao terreiro para o jogo de búzios ou outros serviços mágicos também podem se sentir incomodados pelo modo como o povo-de-santo usufrui do tempo.
Os afro-descendentes assimilaram o calendário e a contagem de tempo usados na sociedade brasileira, mas muitas reminiscências da concepção africana podem ser encontradas no cotidiano dos candomblés. A chegada de um novo odum, ano novo, é festejada com ritos oraculares para se saber qual orixá o preside, pois cada ano vê repetir-se a saga do orixá que o comanda: será um ano de guerra, se o orixá for um guerreiro, como Ogum, de fartura, se o orixá for um provedor, como Oxóssi, será de reconciliações, se for de um orixá da temperança, como Iemanjá, e assim por diante. O ossé, a semana, constituiu-se num rito semanal de limpeza e troca das águas dos altares dos orixás. Cada dia da semana, agora a semana de sete dias, é dedicado a um ou mais orixás, sendo cada dia propício a eventos narrados pelos mitos daqueles orixás, por exemplo, a quarta-feira é dia de justiça porque é dia de Xangô. As grandes festas dos deuses africanos adaptaram-se ao calendário festivo do catolicismo por força do sincretismo que, até bem pouco tempo, era praticamente compulsório, mas o que a festa do terreiro enfatiza é o mito africano, do orixá, e não o do santo católico.
Embora o candomblé e outras religiões de origem africana sejam de formação recente, aqui constituídas somente depois das primeiras décadas do século XIX, as datas de fundação dos terreiros, assim como as que marcam os reinados de sucessivas mães e pais-de-santo no início são desconhecidas. Seus nomes são bem lembrados e seus feitos são cantados e festejados nas cerimônias que louvam os antigos fundadores – o padê nos candomblés mais velhos –, mas nada de datas. Esse passado brasileiro também já se fez mito.
Os iorubás acreditam que o espírito do ser humano é constituído de diversas partes imateriais, sua alma não é indivisível como na concepção judaico-cristã. Há uma individualidade espiritual chamada ori que só existe no presente, isto é, enquanto se vive no Aiê. Ela é responsável pelas realizações humanas, contém o destino de cada pessoa. O ori morre e é destruído juntamente com o corpo material. Outra parte é constituída da memória cultuada pela família do morto, o egum, que volta ao presente por meio da reencarnação, que mantém o morto no presente. E[AN1], como parte fundamental, talvez a mais importante, há o orixá particular da pessoa, considerado o seu antepassado remoto. O orixá particular da pessoa é uma ínfima porção do orixá geral cultuado por todos. É o vínculo do ser humano com o divino, o eterno, o passado mítico. Com a morte do corpo, o orixá pessoal retorna ao orixá geral, àquele que existe desde o princípio dos tempos. O ori representa o presente do ser humano; o egum, a sua capacidade de retornar sempre a esse presente, ou se eternizar no Orum como antepassado egungum; o orixá pessoal, a ligação do presente com o mito, com o passado remoto que age sobre o presente e do qual recebe as honrarias sacrificiais. O passado reproduzido no presente pela infinidade de humanos, nos quais os orixás se perpetuam a cada nascimento, pois cada ser humano descende de um orixá, fecha de novo o ciclo africano do tempo.
No Brasil dos dias de hoje, o candomblé continua a cultuar a memória de seus mortos ilustres, invocados em diferentes cerimônias e relembrados de geração a geração, mas não pôde preservar a idéia de que os mortos renascem na família carnal, pois a adesão ao candomblé é individual e a família-de-santo não corresponde necessariamente à família biológica. A idéia do antepassado egungum veio ocupar um lugar secundário na religião, apenas complementar na religião dos orixás, que na maioria dos terreiros de formação recente é praticada sem essa referência. Como a religião dos orixás congrega grupos minoritários, cada um pertencente a um determinado terreiro, autônomo em relação aos demais, grupos formados por adeptos que fazem parte de uma sociedade mais ampla, cuja cultura é predominantemente ocidental e cristã, o culto a antepassados coletivos que controlam a moralidade de uma cidade inteira, digamos, como ocorria originalmente em terras africanas, não se viabilizou por razões evidentes. O mundo brasileiro fora dos muros do terreiro não é território dos antepassados, como era na África tradicional.
Fonte: O Candomblé e o Tempo - Reginaldo Prandi
Os iorubás acreditam que o espírito do ser humano é constituído de diversas partes imateriais, sua alma não é indivisível como na concepção judaico-cristã. Há uma individualidade espiritual chamada ori que só existe no presente, isto é, enquanto se vive no Aiê. Ela é responsável pelas realizações humanas, contém o destino de cada pessoa. O ori morre e é destruído juntamente com o corpo material. Outra parte é constituída da memória cultuada pela família do morto, o egum, que volta ao presente por meio da reencarnação, que mantém o morto no presente. E[AN1], como parte fundamental, talvez a mais importante, há o orixá particular da pessoa, considerado o seu antepassado remoto. O orixá particular da pessoa é uma ínfima porção do orixá geral cultuado por todos. É o vínculo do ser humano com o divino, o eterno, o passado mítico. Com a morte do corpo, o orixá pessoal retorna ao orixá geral, àquele que existe desde o princípio dos tempos. O ori representa o presente do ser humano; o egum, a sua capacidade de retornar sempre a esse presente, ou se eternizar no Orum como antepassado egungum; o orixá pessoal, a ligação do presente com o mito, com o passado remoto que age sobre o presente e do qual recebe as honrarias sacrificiais. O passado reproduzido no presente pela infinidade de humanos, nos quais os orixás se perpetuam a cada nascimento, pois cada ser humano descende de um orixá, fecha de novo o ciclo africano do tempo.
No Brasil dos dias de hoje, o candomblé continua a cultuar a memória de seus mortos ilustres, invocados em diferentes cerimônias e relembrados de geração a geração, mas não pôde preservar a idéia de que os mortos renascem na família carnal, pois a adesão ao candomblé é individual e a família-de-santo não corresponde necessariamente à família biológica. A idéia do antepassado egungum veio ocupar um lugar secundário na religião, apenas complementar na religião dos orixás, que na maioria dos terreiros de formação recente é praticada sem essa referência. Como a religião dos orixás congrega grupos minoritários, cada um pertencente a um determinado terreiro, autônomo em relação aos demais, grupos formados por adeptos que fazem parte de uma sociedade mais ampla, cuja cultura é predominantemente ocidental e cristã, o culto a antepassados coletivos que controlam a moralidade de uma cidade inteira, digamos, como ocorria originalmente em terras africanas, não se viabilizou por razões evidentes. O mundo brasileiro fora dos muros do terreiro não é território dos antepassados, como era na África tradicional.
Continua...
Fonte: O Candomblé e o Tempo - Reginaldo Prandi
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