sexta-feira, 22 de julho de 2011

A Chuva dos Poderes


Olorun, o Ser Supremo, o Absoluto, Mãe e pai do universo, depois que criou a terra e todos os seres existentes, desejando que todos prosperassem, resolveu enviar ao centro do mundo, a cidade sagrada de Ilè Ifé, seu representante, o grande sábio e adivinho Orúnmilá. A missão de
Orúnmilá era distribuir poderes muito especiais aos Òrìsás, os primeiros habitantes da terra, para que, através deles, todos os seres existentes: plantas, seres humanos, animais, rios e montanhas, fossem ajudados a prosperarem, cumprirem seu destino no mundo e fossem felizes.

Orúnmilá, muito contente com a importante tarefa que Olorun lhe havia confiado, rapidamente se dedicou aos preparativos da grande viagem que faria do espaço infinito do orun para a terra aiyè, procurando não esquecer as ordens de Olorun de desembarcar na primeira cidade da terra, a sagrada Ilè Ifé e, estando lá, distribuir os poderes especiais aos Òrìsás para que eles pudessem ajudar a todos os seres existentes.
 

Assim ocorreu. Depois de um certo tempo de viagem, um tempo que para nós poderia ser toda a eternidade e para Olorum foi apenas o momento de estalar os dedos, Orúnmilá chegou ao Aiyè, mundo visível, e se instalou no centro do mundo, a cidade sagrada de Ilè Ifé.

Os Òrìsás, sabendo da chegada de
Orúnmilá, correram para o lugar onde ele se instalou e fizeram uma grande festa em sua homenagem com muita música, comida e bebida.

Orúnmilá, muito contente com a acolhida, dançou, brincou, bebeu e comeu com todos os presentes, depois foi descansar para, no dia seguinte, pensar como repartiria os poderes que Olorun havia ordenado que fossem distribuídos entre todos os Òrìsás.



No dia seguinte, antes mesmo do sol raiar e do galo cocoricar, já havia Òrìsá batendo na porta da casa de
Orúnmilá para fazer os seus pedidos.
O primeiro a chegar na casa de
Orúnmilá foi Esù, com seu jeito alegre, dizendo logo que desejava os poderes da expressão e da comunicação.
Orúnmilá, que conhecia bem o descontraído Esù, não ficou chateado por ter sido acordado tão cedo e, com sua sabedoria de pessoa mais velha, calmamente pôde sentir os
desejos existentes no coração de Esù. Pôde perceber que Esù desejava conhecer as formas de se expressar dos pássaros, seres humanos, peixes, árvores e espíritos para favorecer o diálogo entre os habitantes do Aiyè - mundo visível, com os habitantes do Orún - o além infinito, e, assim, ajudar a todos a mobilizarem seus sonhos e desejos.
Orúnmilá, depois de ouvir as boas intenções de Esù, pediu a ele que aguardasse um pouco que breve distribuiria de forma justa os poderes que Olorum enviou. Esù, agradecido, fez uma brincadeira com Orúnmilá, deu uma boa gargalhada e saiu rapidamente para resolver os desejos de algumas pessoas.
 

O segundo visitante que apareceu na casa de Orúnmilá, logo quando o sol surgiu e o galo fez o seu primeiro cocoricar, foi Ògún. O valente ferreiro Ògún disse que desejava auxiliar a todos os seres a descobrirem novos caminhos, novas tecnologias e assim, inovassem, criassem e fizessem suas comunidades prosperarem.

A terceira a chegar, ainda de manhã bem cedinho, quando o galo cantou o seu terceiro e último cocoricar do dia, foi Òsún, a rainha da cidade de Osogbò. Òsún disse a
Orúnmilá que desejava tornar as águas dos rios abundantes, a terra, os seres humanos e os animais férteis. Orúnmilá ouviu a todos com muita atenção e gentileza e pediu que aguardassem a sua decisão.
 

Depois que Òsún saiu, deixando no ar o seu perfume de flor, foram chegando outros importantes Òrìsás: Òsóòsi, Yemojá, Omolu, Nanan, Osaniyn, Oyá, Osúmárè e assim por diante. Orúnmilá passou o dia recebendo visitas, sem nem ter comido direito o prato de inhame amassado misturado com ervas saborosas que havia preparado para o seu desjejum.
Eram tantas visitas e tantos pedidos dos muitos Òrìsás que habitavam a terra que
Orúnmilá, uma pessoa sempre muito calma, já estava ficando nervoso.



Às vezes um Òrìsá chegava e falava com Orúnmilá que desejava o poder de conhecer todos os mistérios das florestas, logo depois, chegava outro Òrìsá e desejava que todos os mistérios das florestas fossem seus. Às vezes um Òrìsá desejava ter o poder de se comunicar com o espírito dos mortos, logo depois, chegava um outro Òrìsá que desejava ter o poder de afastar o espírito dos mortos. E assim continuou, um quer uma coisa, outro quer outra! Um quer uma coisa, outro quer outra!
Orúnmilá, depois de tantas visitas, ficou muito preocupado.
- Como poderia distribuir os poderes aos Òrìsás de forma justa e de tal modo que todos ficassem satisfeitos?
- Como fazer que os Òrìsás percebessem a importância de favorecer a todos os seres existentes para que eles cumprissem seu destino e contribuíssem para o fortalecimento e expansão da comunidade terrestre?
 

Os dias se passaram e como Orúnmilá não distribuía os poderes entre os Òrìsás, cada vez mais as coisas se complicavam. Criou-se uma grande disputa e confusão. Alguns Òrìsás já estavam tão zangados que foram reclamar os poderes que julgavam possuir a Olorun. Era um tal de conversa para lá, conversa para cá, reclamação aqui, reclamação acolá que Orúnmilá, com a cabeça esquentada pela impaciência dos Òrìsás, resolveu se afastar da cidade sagrada de Ilè Ifé e passar um tempo na floresta para se acalmar e encontrar uma decisão que fosse mais justa e satisfatória para o bem do planeta.

Olorun, lá no espaço do além, começou a receber as reclamações dos habitantes do Aiyè. Bananeira reclamava que precisava de mais luz para que seus cachos não apodrecessem. Quiabo reclamava que necessitava de chuva para que pudesse crescer e se multiplicar. Inhame reclamava que necessitava de terra fértil para se fortalecer. Dendezeiro reclamava da ausência de pessoas, insetos e bichos para aproveitarem seus abundantes frutos e espalhá-los pelo mundo. O vento reclamava, os rios reclamavam, as pessoas reclamavam, todos reclamavam e solicitavam a ajuda dos Òrìsás.
 

Olorun, sabendo da delicada situação que o sábio e justo Orúnmilá estava enfrentando por ter aceitado a difícil tarefa de distribuir os poderes aos Òrìsás, mandou para auxiliá-lo na floresta de Ilê Ifé, Agemò, o Camaleão.

Deitado no chão da floresta de Ilè Ifé, procurando com os olhos entre as imensas copas das árvores o pedaço azul do céu, o grande adivinho
Orúnmilá tentava se concentrar e descobrir o que fazer. Pensava naquela tarefa tão delicada que envolvia todos os seres do mundo e, mesmo sendo um grande adivinho, não conseguia encontrar uma solução.
Orúnmilá estava tão entretido nos seus pensamentos que não percebeu no meio das folhagens de uma grande árvore sagrada, a gameleira, Agemò, o camaleão que o observava
atentamente.
Agemò, o camaleão, um bicho muito cismado, disfarçado no verde da folhagem, aproveitando o som do vento, murmurou com sua língua grande para
Orúnmilá:
- Ei seu moço, eu trouxe uma boa idéia pro sinhô!
Orúnmilá, preocupado, não percebia nada e Agemò coberto com seu disfarce, aproveitando o som do vento, murmurou novamente.
- Oi seu moço, presta atenção, eu trouxe uma boa idéia pro sinhô!

Percebendo que não conseguia ser visto e comovido com o esforço de
Orúnmilá, Agemò, o camaleão, um bicho muito desconfiado, resolveu se arriscar saiu do mato, e, mudando de verde-folha para vermelho-terra, se aproximou sorrateiramente de Orúnmilá e falou:
- Ê moço, ê moço, é o sinhô mesmo! Presta atenção moço, eu trouxe uma idéia muito da boa pro sinhô! 
Orúnmilá tomou um susto danado com aquela voz estranha. Olhou amedrontado para um lado e para outro lado da mata. Espantado, finalmente se acalmou ao ver bem perto o camaleão Agemò.
 

Após se refazer do susto, Orúnmilá respirou fundo, readquiriu a calma e respondeu a Agemò:
– Olá Agemò, grande mensageiro de OLORUN. Conte-me a sua boa idéia!
– Oi moço, eu não queria me meter nesses assuntos, mas como o Sinhô está muito avexado. Vou falar!
- Fale Agemò, eu agradeço sua ajuda!
- Então, seu Milá, porque que o sinhô não faz cair uma chuva em Ifé. Uma chuva bem especial.
- Oxente seu Agemo, chuva pra quê?
- Bem seu Milá, eu vou explicar direitinho. É o seguinte, o sinhô convida todo mundo num dia especial e nesse dia faz que caia uma grande chuva de poderes sobre todos. Assim, os poderes que cada Òrìsás conseguir pegar, esse poder será dele por direito!
Nem mais nem menos! Cada um terá aquilo que merecer conforme seu esforço!


Orúnmilá, muito satisfeito com aquele conselho, deu um belo sorriso e levantou para agradecer a Agemo. Agemo, sendo um bicho muito desconfiado, antes que Orúnmilá acabasse de sorrir e retornasse os olhos na sua direção, mudou de cor rapidamente do vermelho-terra para o verde-folha e desapareceu no meio do mato.
 

Muito feliz e agradecido com a sugestão de Agemo, Orúnmilá rapidamente retornou à cidade de Ilè Ifé e convocou todos os Òrìsás para comparecerem no dia da grande feira, em frente ao palácio do Oní, rei de Ilè Ifé, um local onde todos os habitantes do reino yorubá se reuniam para comercializar seus produtos. Nesse dia tão especial para todo o povo, ele vai fazer cair uma chuva contendo todos os poderes. O poder que for apanhado quando a chuva cair, esse será o poder que o Òrìsá passará a possuir.
Todos os Òrìsás ficaram contentes com a decisão de
Orúnmilá e, no dia marcado, estavam preparados para apanhar os imensos poderes que cairiam da chuva.
 


Assim, no dia decidido, começou a cair a chuva dos poderes, foi um corre-corre danado. No começo era um tal de encher cisterna, tanque, bacia, balde, panela e até caneca, mas, no final do dia, todos estavam tão satisfeitos que alguns Òrìsás decidiram não ficar mais tempo debaixo da chuva para não terem poderes em demasia.
 

A experiência difícil vivida por Orúnmilá, o grande adivinho, que teve na mão todos os poderes existentes, mostrou aos Òrìsás e a todos os seres do Aiyè que para se ter muito poder, requer muita sabedoria, responsabilidade, dedicação, cuidado e respeito ao outro e ao bem estar de todos os seres da comunidade.
 

Assim, a partir daquele dia, os Òrìsás, alguns possuidores de imensos poderes, outros de poderes bem pequenos, começaram a perceber que o mais importante na vida é unirem suas potencialidades e ajudarem as pessoas, as árvores, plantas, animais e as sua comunidade a cumprirem seus destinos, prosperarem e serem felizes.

A bananeira depois de ser ajudada pela fecundidade de Òsún amadureceu os seus frutos, alimentou os pássaros e animais da floresta, morreu e germinou em infinitos e diferentes brotos pelo mundo. O quiabo, depois de ser ajudado com a chuva do Òrìsá Sangò, cresceu, cresceu e de cada um dos seus ramos fez eclodir mais de trinta novos quiabos a cada período de chuva. Inhame, ajudado pelo Òrìsá Òsáàlá, ampliou suas raízes pela terra fofa e alimentou muitos seres humanos. Os abundantes frutos vermelho-amarelados do dendezeiro foram bem aproveitados, transformaram -se em azeite de dendê para o preparo de saborosos quitutes ensinados pelo Òrìsá Oyá, pratos deliciosos como o acará e abará que alimentam muitas pessoas e fazem outras ganharem muito dinheiro.

Nos espaços infinitos do Òrun, alegre com o trabalho dos Òrìsás e agradecido pela imensa sabedoria que
Orúnmilá e Agemo levaram à terra, Olorun até hoje dá enormes gargalhadas ao ver no Aiyè as muitas crianças brincarem, as árvores crescerem, os bichos nascerem e se multiplicarem.
 

O Ser  Supremo Olorun, mãe e pai do universo, mesmo sabendo dos enormes problemas existentes no mundo nos dias atuais, está muito contente em perceber que muitos seres humanos, pássaros, insetos, árvores e montanhas conseguem seguir seus destinos, crescer e ser feliz, melhor ainda, aprenderam a ajudarem-se mutuamente para o bem e prosperidade de todos.




(Adaptação livre inspirada na obra de Mestre Didi feita por Ronaldo Martins)

Texto extraído do estudo: Agbon - Arte, Beleza e Sabedoria Ancestral Africana - Ronaldo Martins dos Santos

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