quarta-feira, 1 de junho de 2011

Ritmos e Repertórios no Candomblé


A música ritual do Candomblé costuma ser chamada de "toada" ou "cantiga", sendo este o termo mais usado atualmente. "Em candomblé a gente não chama "música". Música é um nome vulgar,todo mundo fala. É um...como se fosse um orô (reza)...uma cantiga pro santo". (Jorge). Aqui, entenderemos "cantiga" como um poema musicado, ou seja, a sobreposição de letra a melodia. Desse modo podemos classificar as cantigas em dois grupos principais: aquelas destinadas às cerimônias privadas (de roncó), cuja letra (em português ou fragmentos de línguas africanas), alude às etapas do rito e aquelas das cerimônias públicas (de barracão), cuja distinção em relação às primeiras se dá pelareferência aos mitos e pela presença do ritmo, executado pelos atabaques. Entretanto, as mesmas cantigas cantadas no barracão podem, por vezes, serem ouvidas no "roncó", sem o ritmo característico. 
Nos candomblés ao tempo de Arthur Ramos (1934:163), contudo, o ritmo acompanhava as cerimônias privadas. A presença do ritmo no barracão parece estar associada à dança, que rememora os atributos míticos das divindades. Desse modo, um deus guerreiro, como Ògún, estabelece uma coreografia na qual os movimentos serão ágeis, rápidos e vigorosos, adequando-se ao ritmo executado, diferentemente dos passos lentos, fluidos e ondulantes de Òsún, uma deusa das águas. "Eu vejo a música como a...representação de expressar a dança do orixá,o preceito, o que ele faz, como ele vive...Como se fosse eu falando da minha vida ou cantando alguma coisa para ele." (Jorge). Assim,  com  seus  ritmos  característicos,  cada  orixá  expressa,  na linguagem musical e gestual, suas particularidades, criando uma atmosfera na qual tornam inteligíveis e plenas de sentido religioso. Daí podermos falar dos ritmos mais freqüentes no candomblé em termos do que representam e de sua relação com as entidades às quais homenageiam. O adahun é o ritmo mais citado como característico de Ògún. É um ritmo "quente", rápido e contínuo, que pode ser executado sem canto, ou seja, apenas pelos atabaques. Pode, também, ser executado com o objetivo de propiciar o transe. O toque de bolar, por exemplo, se faz ao som do adahun. O aguere é o ritmo de Osóòsi. É acelerado, cadenciado e exige agilidade na dança, do mesmo modo que a caça exige a agilidade do caçador. O ritmo de Obaluwaiyè é o Opanijé, um ritmo pesado, "quebrado" (por pausas) e lento. Este ritmo lembra a circunspeção deste deus das epidemias, ligado à terra. O bravum, embora não seja atribuído especialmente a algum orixá, é freqüentemente escolhido para saudar Osùmarè, Yewá e Osalá. É um ritmo relativamente rápido, bem dobrado e repicado. A dança preferida de Sangò se faz ao som do alujá, um ritmo quente, rápido, que expressa força e realeza recordando, através do dobrar vigoroso do Hum, os trovões dos quais Sangò é o senhor. Ijesá, o único ritmo tocado com as mãos no rito Ketu é, por excelência, o ritmo de Òsún. É um ritmo calmo, balanceado, envolvente e sensual, como a deusa da água doce, à qual faz alusão. Ele é tocado ainda para o orisá filho de Òsún, Logun-Edé, algumas vezes para Esù e para Osalá.



Para Yànsán, divindade dos raios e dos ventos, toca-se o agó, ilú, ou aguerê de Yànsán, termos que designam um mesmo ritmo que, de tão rápido, repicado e dobrado, também é conhecido como "quebra-prato". É o mais rápido ritmo do candomblé, correspondendo à personalidade agitada, contagiante e sensual desta deusa guerreira, senhora dos ventos e que tem poder de afastar os espíritos dos mortos (eguns). Sató, um ritmo vagaroso e pesado, é geralmente tocado para Nanan, considerada a anciã das ìyágbás (orixás femininos). O batá, talvez um dos ritmos mais característicos do candomblé, pode ser tocado em duas modalidades: batá lento e batá rápido, sendo o primeiro executado para os orisás cuja dança comedida denota certas características de suas personalidades, como a dança de Osalufan, o deus arcado e velho que, com seu opasoro (cajado), criou o mundo. Significativamente, o termo batá, designa também o tambor de duas membranas, afinadas por cordas, cujo uso nos candomblés do Norte e Nordeste do Brasil é tão difundido que talvez por este motivo o ritmo tenha tomado seu nome, ainda quando não executado por este instrumento. Vamunha é um outro ritmo, também conhecido por: hamunia, vamonha, avamunha, avania ou avaninha, tocado para todos os orixás. É um toque rápido, empolgado e tocado em situações específicas como a entrada e saída dos filhos de santo no barracão e para a retirada do orixá incorporado. É nesse momento que o orixá saúda os pontos de axé da casa e se retira sob a aclamação dos presentes. Todos os toques (ritmos) acima são característicos do rito Ketu e, conforme procuramos demonstrar, associam letra, melodia e dança que, integrados,"narram" a experiência arquetípica dos orixás, vividas em nível individual e grupal e cujo ápice é o transe.

Alguns destes ritmos são tão personalizados dos orixás que podem dispensar as letras ou mesmo a dança como elemento de identificação. É o caso do alujá, do  opanijé  e  do  agó  (quebra-prato),  consagrados  a  Sangò,  Obaluwaiyè  e  Yànsán, respectivamente. No rito Angola, o repertório rítmico é composto por três polirritmos básicos e algumas variações sobre estes. São eles: cabula, congo e barravento (do qual avariação mais conhecida é a muzenza). Todos são ritmos rápidos, bem "dobrados", repicados e tocados "na mão" (sem varinha). De modo geral, todas as divindades podem ser louvadas com cânticos ao som de qualquer dos três: sejam os orixás, inkices, ou aquelas tidas como originárias dos cultos ameríndios (caboclos índios e boiadeiros). A própria aceitação dos elementos nacionais sobrepostos às influências africanas no candomblé angola é perceptível, principalmente pelas letras das cantigas, cantadas em português e mescladas aos fragmentos das línguas "bantu". No Ketu a tolerância ao português é mais restrita e as casas de Ketu que cultuam caboclos estabelecem uma "mediação" que intercala, na ordem do xirê, o toque dos caboclos. Assim, para que o "xirê Ketu" possa abrigar as toadas de caboclo é preciso que ocorra uma "transição musical", na qual o toque "vira para Caboclo", não sem antes serem cantadas algumas cantigas de angola.

Desse  modo,  vemos  como  os  repertórios  musicais  referendam  as sobreposições dos modelos angola e ketu, sendo um dos elementos principais para sua afirmação e identificação. No caso do candomblé angola, é inegável que um repertório cuja letra permite associações com palavras em português, estabeleça uma comunicação muito mais direta e fácil, inclusive entre a divindade e o interlocutor, tornando-se mais "inteligível" e mais facilmente memorizável. O mesmo acontece com as toadas ou "salvas" de caboclo (cantiga com que o caboclo se apresenta), cujas letras costumam ser em português e relatam acontecimentos relacionados a sua "vida" mítica, entre outras coisas. Nesse sentido, os ritmos angola compartilham um repertório musical muito mais próximo do modelo de música popular brasileira, dentro da qual o samba é a principal expressão. Não é de se estranhar que um toque de angola seja também chamado de "samba de angola", fazendo referência não apenas à semelhança dos ritmos, mas também à alegria e descontração da dança. Ao contrário da coreografia Ketu, caracterizada pelas particularidades do orixá e conduzida pelo ritmo, no angola um número bem menor de variações rítmicas admite um leque maior de danças, incluindo a dos caboclos, que dançam com maior inventividade. Por outro lado, alguns ritmos podem caracterizar situações rituais precisas, que terminam por eles sendo denominadas. É o caso do "barravento" que, sendo um toque rápido e propiciatório ao transe (e portanto semelhante ao adahun no Ketu), acaba denominando os movimentos que prenunciam o transe. Também o ritmo muzenza (uma "variação" do "barravento") pode designar a dança, curvada, característica da primeira saída pública de iniciação no angola, também chamada de "saída de muzenza", símbolo da humildade do iniciado. De qualquer modo, é através da música ritual que as diferenças entre as "nações" são observadas, revelando a forma do culto não só pela maneira como se toca mas, também, como se canta, o que se canta, como se dança, para quem e em que ocasiões.  Entretanto,  apesar  de  haver  um  repertório  básico,  compartilhado  pelas diferentes casas de uma mesma "nação", a apropriação das cantigas se dá de modo diferenciado.
 
Como cantar é uma atitude onde se busca o contato com forças divinizadas, não importa tanto uma tradução literal resultante de uma ordenação sintática (o que seria impossível dado o vocabulário residual das línguas africanas aqui existente). Importa, antes, o significado atribuído e justificado pelo uso da "língua" dos antepassados e o saber a eles atribuído. Como aponta Yeda Pessoa de Castro, "importa saber, por exemplo, para que santo e em que momento deve ser cantada tal cantiga e não o que essa cantiga significa literalmente" (CASTRO, 1983:85). Dessa forma, o que realmente importa é que a música sempre fará alusão, pela escolha de qualquer dos seus elementos, a momentos significativos do rito, não só ordenando-o mas, ao mesmo tempo, estabelecendo uma identidade entre aqueles que compartilham deste significado que "norteia" a relação do indivíduo com seus deuses. 
A Música no Contexto Ritual
 
 
A música como elemento ordenador. São várias as circunstâncias em que a música ordena os acontecimentos ou o próprio tempo. A cantiga em que se bolou pela primeira vez (chamada pelos adeptos de "cantiga de morte"), por exemplo, imprime uma marca na vida pessoal do ìyáwò. Fará parte de seu estojo de identidade religiosa. O bori, um ritual pleno de detalhes, é inteiramente marcado por cantigas que imprimem uma certa ordem na cerimônia. Primeiro, canta-se a sasanyin, seqüência de cantigas louvando cada uma das folhas que comporão o omi erò (banho de ervas) com que o ori será lavado. Nesse caso a sasanyin ordena a própria seqüência em que as folhas entrarão no ritual. Por exemplo: a primeira folha a entrar no omi erò é o peregun, uma folha de Ògún. A primeira cantiga da sasanyin será, portanto: "Peregun alasó ti tun Peregun alasó ti tu ô Babá peregun ala ojo re se Peregun alaso ti tun o" (rito Ketu). E assim, toda uma seqüência, com mesma melodia e letras diferentes para folhas diferentes. Durante todo o tempo, soa o adjá. Cada folha, sendo louvada particularmente, torna cada momento do ritual particularizado e inesquecível. Cada folha é sagrada e por isso para ela se canta. Cada momento é, portanto, sagrado. "Uma cantiga pode estragar a vida de muita gente. Você canta uma cantiga errada, você pode estar estragando sua própria vida" (Jorge)

Durante a estadia do abiyan no roncó (quarto reservado ao recolhimento), a música servirá ainda como elemento ordenador do próprio tempo. Existem cantigas a serem cantadas ao amanhecer, ao entardecer, ao anoitecer, as cantigas que devem ser cantadas antes das refeições, as cantigas dos banhos rituais e inúmeras outras. Essas cantigas são sempre ensinadas pela "mãe-criadeira" ou "ajibonan", que costuma ser uma ebogmi, à qual o ìyáwò sempre deverá reverenciar. Também os banhos rituais, especialmente os noturnos, são acompanhados por cantigas. Desse modo, a rotina do recolhimento vai sendo construída a partir das tarefas que cabem ao ìyáwò executar. E como cada tarefa está vinculada ao momento musical, a construção do tempo se faz como num relógio cujos ponteiros são as cantigas. A música é, pois, a principal forma de expressão do ìyáwò neste momento, uma vez que lhe é interditado o uso da palavra. É nesse contexto, do recolhimento, espera-se que uma nova personalidade seja forjada, inclusive pela utilização de um repertório aprendido não só em termos musicais mas, também, de um vocabulário específico do culto, formado pelos termos de origem africana, conhecidos como "língua-do-santo". No  orò, a mais importante das cerimônias  da  iniciação, o  caráter sacralizante e ordenador da música é percebido em sua plenitude. Tudo deve ser acompanhado pela música; mesmo os intervalos entre uma etapa e outra da "feitura" e, portanto, entre as cantigas, devem ser preenchidos pelo som dos adjás, agitado sininterruptamente pelas ekedjis. 


Todos  os  momentos  têm  suas  cantigas  próprias,  começando  pela depilação da cabeça que deve ser feita aludindo-se ao orixá ao qual está sendo consagrada e ao instrumento depilador, a navalha. Nos momentos que se seguem, e quetêm por função preparar a cabeça para receber os sacrifícios, canta-se para a abertura das incisões corporais e a introdução, neles, dos pós sagrados (axés), para as tintas que comporão a pintura da cabeça, para amarrar o kelè, pendurar as contas da divindade no pescoço do iniciado ou qualquer outro ato prescrito pela "nação", terreiro ou mesmo orixá. O mesmo procedimento se dá no momento dos sacrifícios, cantando-se para a entrada dos animais no quarto de santo, distinguindo-os a seguir, um a um, por cantigas (bichos de "quatro-pés", galinhas, pombos etc.) e, finalmente para a faca (que pode ser uma cantiga de Ògún, o dono da faca) e para o sangue que dela escorre: "Ejé soro soro ejé balé kaaró" (rito Ketu). A presença, nesta cantiga, de termos yoruba como ejé (sangue), orò (cerimônia) e balé (relacionado à morte), reforçam o sentido de sua utilização neste momento exato. E, uma vez que foram "lidas" através destes elementos, poderão ser utilizadas em outras cerimônias do candomblé, como os ebós (rituais de "limpeza") e obrigações a Esù, nas quais a presença do sacrifício é indispensável. Essa ordenação musical não acontece apenas nas cerimônias privadas; ela se dá também nas saídas públicas do ìyáwò e no toque como um todo. A "saída de Osalá" por exemplo, comporta cantigas relacionadas a Osalá ou que façam referência à condição do iniciado (ìyáwò).


Continua...

Fonte: Artigo: Cantar para subir -  Rita Amaral e Vagner Gonçalves Silva

Nenhum comentário:

Postar um comentário