sexta-feira, 17 de junho de 2011

Comportamento humano como herança dos Òrìsás



Segundo o Candomblé, cada pessoa pertence a um Deus determinado, que é o senhor de sua cabeça e mente e de quem herda características físicas e de personalidade. É prerrogativa religiosa do pai ou mãe-de-santo descobrir esta origem mítica através do jogo de búzios. Esse conhecimento é absolutamente imperativo no processo de iniciação de novos devotos e mesmo para se fazerem previsões do futuro para os clientes e resolver seus problemas. Embora na África haja registro de culto a cerca de 400 orixás, apenas duas dezenas deles sobreviveram no Brasil. A cada um destes cabe o papel de reger e controlar às forças da natureza e aspectos do mundo, da sociedade e da pessoa humana. Cada um tem suas próprias características, elementos naturais, cores simbólicas, vestuário, músicas, alimentos, bebidas, além de se caracterizar por ênfase em certos traços de personalidade, desejos, defeitos, etc. Nenhum orixá é nem inteiramente bom, nem inteiramente mau. Noções ocidentais de bem e mal estão ausentes da religião dos orixás no Brasil. E os devotos acreditam que os homens e mulheres herdam muitos dos atributos de personalidade de seus orixás, de modo que em muitas situações a conduta de alguém pode ser espelhada em passagens míticas que relatam as aventuras dos orixás. Isto evidentemente legítima, aos olhos da comunidade de culto, tanto as realizações como as faltas de cada um.

Vejamos abreviadamente algumas das características de personalidade mais usualmente atribuídas aos orixás por seus seguidores:

Esù — Deus mensageiro, divindade, o trapaceiro. Em qualquer cerimônia é sempre o primeiro a ser homenageado, para se evitar que se enraiveça e atrapalhe o ritual. Guardião das encruzilhadas e das portas da rua. Sincretizado errôneamente como o Diabo católico. Seus símbolos são um porrete fálico e tridentes de ferro. Os seguidores acreditam que as pessoas consagradas a Esù são inteligentes, sexy, rápidas, carnais, licenciosas, quentes, eróticas e sujas. Filhos de Esù gostam de comer e beber em demasia.  Eles são os melhores, mas eles decidem quando o querem ser. Não são dados ao casamento, gostam de andar sozinhos. Deve-se pagar a Esù com dinheiro, comida, atenção sempre que se precise de um favor dele. Como o pai, filhos de Esù nunca fazem nada sem paga. A saudação a Esù: Laroye Esù!

Ògún — Deus da guerra, do ferro, da metalurgia e da tecnologia. Sincretizado como Santo Antônio e São Jorge. É o orixá que tem o poder de abrir os caminhos, facilitando viagens e progressos na vida. Os estereótipos mostram os filhos de Ògún como teimosos, apaixonados e com certa frieza racional. Eles são muito trabalhadores, especialmente moldados para o trabalho manual e para as atividades técnicas. Embora eles usualmente façam qualquer coisa por um amigo, os filhos e filhas de Ògún não sabem amar sem machucar: despedaçam corações. Acredita-se que sejam muito bem dotados sexualmente, tanto quanto os filhos de Esù, irmão de Ògún. Embora eles possam ter muitos interesses, os filhos de Ògún preferem as coisas práticas, detestando qualquer trabalho intelectual. Eles dão bons guerreiros, policiais, soldados, mecânicos, técnicos. Saudação: Ògún O!

Osóòsi — Deus da caça. Sincretizado com São Jorge e São Sebastião. Orixá da fartura. Seus filhos são elegantes, graciosos, xeretas, curiosos e solitários. Embora dêem bons pais e boas mães, têm sempre dificuldade com o ser amado. São amigáveis, pacientes e muitas vezes ingênuos. Os filhos de Osóòsi têm aparência jovial e parece que estão sempre à procura de alguma coisa. Não conseguem ser monogâmicos. Têm de caçar noite e dia. Por isso são considerados irresponsáveis. De fato, eles se sentem livres para quebrar qualquer compromisso que não lhes agrade mais. Dificilmente eles se sentem obrigados a comparecer a um encontro marcado, quando outra coisa mais interessante cruza o seu caminho. Saudação: Oke aro!


Obaluwaiyè ou Omulu — Deus da varíola, das pragas e doenças. É relacionado com todo o tipo de mal físico e suas curas. Associado aos cemitérios, solos e subsolos. Sincretizado com São Lázaro e São Roque. Seus filhos aparentam um aspecto deprimido. São negativos, pessimistas, inspirando pena. Eles parecem pouco amigos, mas é porque são tímidos. Seja amigo de um deles e você descobrirá que tudo o que eles precisam para ser as melhores pessoas do mundo é de um pouco de atenção e uma pitada de amor. Quando envelhecem, alguns se tornam sábios, outros parecem completos idiotas. Saudação: Atoto!

Sangò — Deus do trovão e da justiça. Sincretizado com São Jerônimo. Seus filhos se dão bem em atividades e assuntos que envolvem justiça, negócios e burocracia. Sentem que nasceram para ser reis e rainhas, mas usualmente acabam se comportando como plebeus. São teimosos, resolutos e glutões; gananciosos por dinheiro, comida e poder. Uma pessoa de Sangò gosta de se mostrar com muitos amantes, embora não sejam reconhecidos como pessoas capazes de grandes proezas sexuais. Vivem para lutar e para envolver as pessoas que o cercam na sua própria e interminável guerra pessoal. Gostam de criar suas famílias, protegendo seus rebentos além do usual. Por isso são muito bons amigos e excelentes pais. Saudação: Kawo Kabiesilè !

Òsún — Deusa da água doce, do ouro, da fertilidade e do amor. Sincretizada com Nossa Senhora das Candeias. Senhora da vaidade, ela foi a esposa favorita de Sangò. Os filhos e filhas de Òsún são pessoas atrativas, sedutoras, manhosas e insinuantes. Elas sabem como manobrar os seus amores; são boas na feitiçaria e na previsão do futuro. Adoram adivinhar segredos e mistérios. São orgulhosas da beleza que pensam ter por direito natural. Podem ser muito vaidosas, atrevidas e arrogantes. Dizem que sabem tudo do amor, do namoro e do casamento, mas têm muita dificuldade em criar seus filhos adequadamente, muitas vezes até se esquecendo que eles existem. Não gostam da pobreza e nem da solidão. Saudação: Ore Yeye O!

Yànsán ou Oyá — Deusa dos raios, dos ventos e das tempestades. É a esposa de Sangò que o acompanha na guerra. Orixá guerreira que leva a alma dos mortos ao outro mundo. Sincretizada com Santa Bárbara. Seus filhos e filhas são mais dotados para a prática do sexo do que para o cultivo do amor. Deusa do erotismo, ela é uma espécie de entidade feminista. As pessoas de Yànsán são brilhantes, conversadoras, espalhafatosas, bocudas e corajosas. Detestam fazer pequenos serviços em favor dos outros, pois sentem que isso contraria sua majestade. Elas podem dar a vida pela pessoa amada, mas jamais perdoam uma traição. Saudação: Epahey !

Yemo — Deusa dos grandes rios, dos mares, dos oceanos. Cultuada no Brasil como mãe de muitos orixás. Sincretizada com Nossa Senhora da Conceição. Freqüentemente representada por uma sereia, sua estátua pode ser vista em quase todas as cidades ao longo da costa brasileira. Ela é a grande mãe, dos orixás e do Brasil, a quem protege como padroeira, sendo igualmente Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Os filhos e filhas de Yemo tornam-se bons pais e boas mães. Protegem seus filhos como leões. Seu maior defeito é falar demais; são incapazes de guardar um segredo. Gostam muito do trabalho e de derrotar a pobreza. Fisicamente são pessoas pouco atraentes, mulheres de bustos exagerados, e sua presença entre outras pessoas é sempre pálida. Saudação: Odoìyá!


Osáàlá — Deus da criação. Sincretizado com Jesus Cristo. Seus seguidores vestem-se de branco às sextas-feiras. É sempre o último a ser louvado durante as cerimônias religiosos afro-brasileiras; é reverenciado pelos demais orixás. Como criador, ele modelou os primeiros seres humanos. Quando se revela no transe, apresenta-se de duas formas: o velho Osalufon, cansado e encurvado, movendo-se vagarosamente, quase incapaz de dançar; o jovem Osogiyan, dançando rápido como o guerreiro. Por ter inventado o pilão para preparar o inhame como seu prato favorito, Osogiyan é considerado o criador da cultura material. Ao invés de sacrifício de sangue de animais quentes, Osáàlá prefere o sangue frio dos caracóis. Os filhos de Osáàlá gostam do poder, do trabalho criativo, apreciam ser bem tratados e mostram-se mandões e determinados na relação com os outros. São melhores no amor do que no sexo, gostam muito de aprender e de ensinar, mas nunca ensinam a lição completamente. São calados e chatos. Gostam de desafios, são muito bons amigos e muito bons adversários aos que se atrevem a se opor a eles. Povo de Osáàlá nunca desiste. Saudação: Epe Bàbá!


"Tal pai, tal filho." Assim, cada orixá tem um tipo mítico que é religiosamente atribuído aos seus descendentes, seus filhos e filhas. Através de mitos, a religião fornece padrões de comportamento que modelam, reforçam e legitimam o comportamento dos fiéis (Verger, 1957, 1985b).

De fato, o seguidor do Candomblé pode simplesmente tomar os atributos do seu orixá como se fossem os seus próprios e tentar se parecer com ele, ou reconhecer através dos atributos da divindade bases que justificam sua conduta. Os padrões apresentados pelos mitos dos orixás podem assim ser usados como modelo a ser seguido, ou como validação social para um modo de conduta já presente. Um iniciado pode, ao familiarizar-se com seus estereótipos míticos, identificar-se com eles e reforçar certos comportamento, ou simplesmente chamar a atenção dos demais para este ou aquele traço que sela sua identidade mítica. Mudar ou não o comportamento não é importante; o que conta é sentir-se próximo do modelo divino.

Além de seu orixá dono da cabeça, acredita-se que cada pessoa tem um segundo orixá, que atua como uma divindade associada (juntó) que complementa o primeiro. Diz-se, por exemplo: "sou filho de Oxalá e Iemanjá". Geralmente, se o primeiro é masculino, o segundo é feminino, e vice-versa, como se cada um tivesse pai e mãe. A segunda divindade tem papel importante na definição do comportamento, permitindo opera-se com combinações muito ricas. Como cada orixá particular da pessoa deriva de uma qualidade do orixá geral, que pode ser o orixá em idade jovem ou já idoso, ou o orixá em tempo de paz ou de guerra, como rei ou como súdito etc. etc., a variações que servem como modelos são quase inesgotáveis.

Às vezes, quando certas características incontestes de um orixá não se ajustam a uma pessoa tida como seu filho, não é incomum nos meios do candomblé duvidar-se daquela filiação, suspeitando-se que aquele iniciado está com o "santo errado", ou seja, mal identificado pela mãe ou pai-de-santo responsável pela iniciação. Neste caso, o verdadeiro orixá tem que ser descoberto e o processo de iniciação reordenado. Pode acontecer também a suspeita de que o santo está certo, mas que certas passagens míticas de sua biografia, que explicariam aqueles comportamentos, estão perdidas. No candomblé sempre se tem a idéia de que parte do conhecimento mítico e ritual foi perdido na transposição da África para o Brasil, e de que em algum lugar existe uma verdade perdida, um conhecimento esquecido, uma revelação escondida. Pode-se mudar de santo, ou encetar interminável busca deste conhecimento "faltante", busca que vai de terreiro em terreiro, de cidade em cidade, na rota final para Salvador — reconhecidamente o grande centro do conhecimento sacerdotal, do axé —, e às vezes até a África e não raro à mera etnografia acadêmica. Reconhece-se que falta alguma coisa que precisa ser recuperada, completada. A construção da religião, de seus deuses, símbolos e significados estará sempre longe de ter se completado. Os seguidores, evidentemente, nunca se dão conta disso.

Nota: Os estereótipos aqui apresentados são em grande parte coincidentes com aqueles colhidos em Salvador, no Rio de Janeiro, e mesmo na África, conforme Lépine, 1981; Augras, 1983; Verger, 1985a. 

Fonte: Deuses Africanos no Brasil uma apresentação do Candomblé - Ricardo P. Aragão

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