sábado, 4 de junho de 2011

Ritmos e Repertórios II



Continuação...

No barracão, o Òrìsá dançará, então, ao som de seus ritmos favoritos. Uma vez encerrados os acontecimentos relacionados à comemoração, a seqüência do sirè é imediatamente retomada do exato ponto onde havia sido interrompido, devendo-se cantar para Osáàlá apenas quando não estiver prevista mais nenhuma cerimônia pois, cantar para Osáàlá significa "fechar o toque". Encerrado o sirè, findo o toque, de modo significativo, os atabaques são cobertos por um pano branco, indicando que o fim da música é o fim da festa e que, sendo os atabaques criadores e sacralizadores da música, mesmo durante os momentos em que não são usados devem indicar esta condição, permanecendo sob a proteção de Osáàlá. 
A música como elemento de identidade a adesão ao Candomblé é um processo complexo, paulatino e que envolve um aprendizado minucioso de códigos religiosos que, é possível dizer, começa na iniciação. Tal aprendizado se dá no âmbito das relações do grupo do terreiro ou da comunidade do "povo-de-santo". É também regulado pelo tempo de iniciação que, alocando o iniciado dentro de uma estrutura hierárquica precisa, delimita posições e papéis. Assim, a inserção do indivíduo na comunidade vai sendo feita através da acumulação dos fundamentos religiosos que estabelecem o tipo de relação do indivíduo com seu deus e com os demais membros do culto. Sendo a música uma das expressões desses fundamentos religiosos, ela também é parte significativa na formação da identidade, tanto no nível individual quanto grupal. Assim, um iniciado trará consigo um repertório musical pessoal, do qual fazem parte as cantigas que estão associadas aos momentos decisivos de sua experiênciareligiosa. Este repertório conterá a cantiga na qual ele bolou, o adahum para o recolhimento, as cantigas do bori, as que quebraram a mudez do recolhimento, as do amanhecer, do entardecer, da maionga, aquelas próprias de sua divindade e o próprio som do adjá que, acompanhando as rezas e as cantigas, se constituirá num forte apelo para propiciar o transe, revivendo a ligação estabelecida durante a iniciação. Podemos dizer destas cantigas de situações rituais específicas que, embora sejam parte de um repertório comum a todos os iniciados do mesmo terreiro, sua apropriação por parte de cada indivíduo remete a conteúdos psicológicos diferenciados. Além disso, elas se somam a outras, como as de seu Òrìsá, da "qualidade" deste, da"nação" à qual pertence etc. 

Um exemplo de cantiga da "nação" ketu é esta que, ao ser executada faz com que todos reverenciem o chão, em sinal de respeito:
"Araketure
Fara Imora
Fara Imora Oluwo
Fara Imora " 


Além disso, a chegada de Egbomis visitantes na casa também obriga a uma ligeira interrupção da música, para que os "couros" (atabaques) "dobrem" em homenagem ao recém-chegado. Estando a música intimamente relacionada à condição hierárquica, até mesmo as pausas entre uma cantiga e outra revelam isto: a roda dos ìyáwòs devem agachar-se enquanto a roda dos Egbomis permanecem em pé. Ainda o pawó (palmas ritmadas), com o qual se louvam os Òrìsás e se reverenciam os Egbomis, indica, musicalmente, a altaposição de quem o recebe. E mais, se considerarmos terreiros de ritos diferentes, poderemos ver que  esta identidade contrastiva "localiza"  os  grupos por "nações" construindo-se, musicalmente conforme já vimos, através dos ritmos, do modo de tocar, das letras, das melodias, enfim do repertório que contempla cada panteão, associado, evidentemente, aos demais elementos do culto. Conclusão: A música ritual do Candomblé, tanto em cerimônias públicas quanto privadas, ultrapassa o valor meramente estético, ou mesmo de elemento propiciador à atmosfera religiosa, para exercer a função de elemento constitutivo em todas as instâncias do culto. Além disso, ela tem funções de ordenação bastante claras, sendo também um dos elementos através dos quais as identidades dos adeptos e dos terreiros e "nações" são construídas e se expressam. Não é sem motivo, como registra Nina Rodrigues em 1932, que os jornais do final do século passado pediam providências contra a atuação dos terreiros, chamando a atenção para os "estrondosos ruídos dos atabaques e dos chocalhos" e à "vozearia dos devotos"  que  perturbavam  o  "sossego"  e  o  "silêncio  público"  com  "vergonhosos espetáculos". O que demonstra a importância da percepção sonora pelos "de fora" na construção da imagem do Candomblé. Percepção desagradável ou não conforme o contexto social e cultural mais amplo onde ela se dá. Assim, aos tempos de perseguição religiosa, quando a música do Candomblé era tida como "estrondosos ruídos", seguiu-seum tempo de tolerância e um de valorização da musicalidade de origem africana em geral (jazz, blues, reggae, samba, gospell, spirituals) que, num processo dialético, contribuiu para a melhor compreensão tanto do Candomblé quanto de sua estética musical. Para os "de dentro", a música do Candomblé não se prende tanto a um julgamento estético, na medida que é uma linguagem, onde o que importa é o sentido que o som adquire enquanto emanação do sagrado. Assim, até mesmo o "ruído" dos búzios, chocalhando entre as mãos do pai-de-santo, pode ser entendido como a fala do deus da adivinhação que "escreverá" na peneira, com os búzios, as respostas às dúvidas do homem. Ou mesmo os rojões das "Fogueiras de Sangò" que refazem no céu o som do deus-trovão. É claro que as religiões em geral têm a música como importante elemento de contato com o sagrado, seja no caso em que ela proporciona o contato mais íntimo com o eu, como é o caso dos mantras das religiões orientais, seja no caso em que sua função é a de integrar os indivíduos numa "única voz", como é o caso das religiões pentecostais,  entre outras, em que os fiéis cantam em uníssono os hinos de louvação. O Candomblé, entretanto, parece reunir estas duas dimensões: a do contato com o eu, através das divindades pessoais, e a do contato com o outro, estabelecidas musicalmente. Mas, ao contrário de outras religiões, no Candomblé a música não é um momento entre os demais. Todos os momentos rituais são, em essência, musicais. Assim, para que os deuses estejam entre os homens ou para que estes ascendam aos deuses é preciso cantar; cantar para subir.



Publicado originalmente na revista Religião &amp -
Fonte: Artigo: Cantar para subir -  Rita Amaral e Vagner Gonçalves Silva

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