Desde os tempos da Colônia, quando os negros viviam em suas senzalas sob o tacão de chicotes, festa, dança e êxtase sempre estiveram associadas, chegando mesmo a apresentar-se como uma característica da raça negra. Alguns historiadores aduzem que, graças a esses três elementos, o negro conseguiu manter sua cultura no seio de uma realidade tão aterrorizadora como a escravidão.
Para quem vivia nesse ambiente hostil, o momento da festa servia como descanso, devoção, lazer, renovação de ânimo e perpetuação de valores, conquanto distantes de seu torrão natal.
O africanista Nina Rodrigues, em seu livro Os Africanos no Brasil, destaca a importância da festa e da dança na cultura negra ao descrever que “ao som de ruidosos tambores e das melopéias africanas, tão monótonas, passavam os negros noites inteiras e às vezes dias a fio em trejeitos e esgares coreográficos, em danças e saltos indescritíveis” (Rodrigues, 1977:155).
Ressalta, ainda, o autor que música, dança, gesto e mímica funcionavam igualmente como forma de linguagem, à medida que substituíam a palavra, tornando-se, assim, um dos únicos meios que os negros tinham para se fazer compreender.
Diferentemente de Nina Rodrigues e Arthur Ramos, que atribuíam um certo primitivismo ao negro brasileiro, Gilberto Freyre traça, em Casa Grande & Senzala um paralelo entre índios e negros. Apoiado em Pitt-Rivers, “confronta as danças dos negros com a dos índios, salientando naquelas a espontaneidade de emoção exprimida em grandes efeitos de massa sem rigidez nenhuma de ritual com o compassado e o medido das danças ameríndias” (Freire, 2001:348).
Segundo Freyre (2001:348), as danças ameríndias assumem um caráter puramente dramático. “Apolíneos, diria Ruth Benedict, a quem devemos estudos tão interessantes sobre os povos que denomina apolíneos, em oposição aos dionisíacos”. Esse contraste é facilmente distinguível nos xangôs afro-brasileiros: “ruidosos, exuberantes, sem nenhuma repressão de impulsos individuais; sem a impassibilidade das cerimônias indígenas”.
Todavia, é com Édison Carneiro e Manoel Querino que o culto afro-brasileiro começará a receber um tratamento especial, pois ambos, sendo negros, descrevem de maneira própria a culinária, as festas, as situações quotidianas e os hábitos culturais dos cultos afro-brasileiros.
Para Carneiro (1977:18), o surgimento dos candomblés data aproximadamente da primeira metade do século XVIII. O processo de surgimento do culto organizado não floresceu na zona rural, pois para mantê-lo, o negro necessitava de dinheiro e liberdade, o que só aconteceria nos centros urbanos: “a concentração de negros nagôs na Bahia, em fins do século XVIII, quando os mineradores, desinteressados das minas já não precisavam dos negros procedentes da Costa da Mina, nem se dispunham a pagar os altos preços que os traficantes por eles pediam”, foram responsáveis pela organização do culto, juntamente com algumas divindades dos jêjes, que professavam uma religião próxima à dos nagôs.
No início, as práticas rituais urbanas eram realizadas por etnias, em locais que recebiam o nome de “terreiros” ou “barracões”. Para Marlene Cunha (1986:46), “o terreiro aparecia assim, como uma nova forma de relação do indivíduo com a terra, porém, em condições urbanas. Ele vem justamente substituir a roça, a terra das pessoas que se deslocam da zona rural para a urbana”.
Tais práticas, hoje comumente chamadas “Festas dos Orixás”, foram descritas por vários autores, cabendo, contudo, à Rita de Cássia do Amaral, dar um maior relevo ao tema da festa e ao conjunto de valores que dela emerge, a ponto de influenciar o que denominou de estilo de vida do povo-de-santo.
Segundo Amaral (1992), o elemento festivo começa com a idéia de que os deuses vêm a terra para dançar, “comer” e vestir belas roupas, o que parece influenciar a visão de mundo do povo-de-santo:
E é assim que se justifica o apelo da música, da festa e dos prazeres sensuais para o povo-de-santo que é fortemente ligado a eles, seja no candomblé, no pagode, na escola de samba, no futebol, no afoxé, ou feijoadas e peixadas de fim de semana, etc. Ao mesmo tempo, há uma consciência de que todo esse ludismo, essa alegria, têm seu preço em termos de trabalho, dinheiro, empenho e dedicação envolvidos. E sendo assim, a avaliação da qualidade e beleza desses eventos é feita, como observou Bourdieu (1983) tendo como padrão de referência o trabalho, a dedicação e custos envolvidos. O tempo e o número de pessoas envolvidas. Cria-se, a partir desses valores um habitus, cuja fórmula generativa é dada por eles que, por sua vez, criam um gosto específico (Amaral, 1992:167).