sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O "Eu" Sagrado



O "Eu" é sagrado no Candomblé. Ele não é somente parte do Òrìsá geral (Augras, 1983). Cada pessoa tem um deus particular, que deve ser assentado num altar privativo, que tem um nome que é só dele, em geral conhecido apenas pela pessoa e por seu zelador, o pai-de-santo. O "Deus" de uma pessoa importante na religião pode ser herdado e continuará a merecer culto, mas ainda assim não substituirá o Òrìsá pessoal do herdeiro.

No Candomblé, além das qualidades (Verger, 1985; Lépine, 1981), o Òrìsá ainda se desdobrará em Òrìsá da pessoa — único e intransferível, assentado na iniciação. O momento culminante da iniciação, não por acaso, é aquele em que, no barracão, o ìyáwó, “virado” (em transe) no orixá, rodopia, salta e grita seu nome — única vez que o pronunciará em público, na chamada saída do nome, ou saída do orukó (nome, em ioruba) no linguajar-do-santo.

Para cada indivíduo, um "Deus". Mas todos os Òrìsás particulares assemelhados se constituem em qualidades do Òrìsá, que juntos formam o Òrìsá geral. Da força (Asè) de cada Òrìsá particular dependerá a força do Òrìsá geral. E não se pode cultuar um Òrìsá geral a menos que se cultuem os Òrìsás particulares, ou os Òrìsás de um grupo, os Òrìsás coletivos, da casa, denominados Ojugbós, e que são coletivos por representar exatamente a origem ancestral daquela casa, daquela família, que, no Novo Mundo, perdida a origem clânica, só pode ser a família ritual, a família-de-santo, o terreiro, o axé.

Mas antes do culto ao "deus" vem o culto à individualidade do homem, à cabeça, o que está dentro da cabeça, o Ori. O ritual de dar comida à cabeça, o bori, é dos mais registrados pela etnografia afro-brasileira (Querino, 1938:63-66; Carvalho, 1984, entre outros). Para os iorubanos, o Ori tem status de divindade, recebendo cultos tão complexos quanto os dirigidos aos Òrìsás (Abimbola, 1976: 113-150; 1975: 32-35, 158-177). No Brasil, como em Cuba, o rito de dar comida à cabeça preservou-se como primeira etapa da iniciação.

Entre nós, o cerimonial do bori é usado não apenas para a iniciação e renovação de forças do iniciado, como também no tratamento de doentes.

É necessário alimentar o Ori como é necessário alimentar o Òrìsá. Não se faz nada para Òrìsá sem antes cuidar da cabeça. “Ori buruku, kossi Òrìsá”, diz-se, ou seja, cabeça ruim não dá Òrìsá. É no Ori que o Òrìsá da pessoa será fixado. 

Entre os iorubanos, diz-se que é o Òrìsá Ajalá é o responsável pelas cabeças. Ele as modela em barro e as coze. Mas Ajalá é velho, distraído e está cansado de fazer cabeças, e assim às vezes ele se descuida e algumas não saem bem feitas: "Quem carregar um ori malfabricado terá muitos problemas na vida, jamais deixará de ter dificuldades com o próprio destino" (ver Abimbola, 1975: 178-207).

Com a nossa morte, o Ori morre, mas não o Òrìsá nem a nossa memória, que poderá ser assentada e cultuada, o Egun.

Reginaldo Prandi

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