"Sementes jogadas em terra fértil crescem, florescem. Já as que caem na areia seca, apodrecem."
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
A iniciação no Candomblé
A iniciação no Candomblé é um processo extremamente complexo e lento, além de ser um assunto que tem muitas restrições para ser discutido publicamente. Assim como há muitas variações associadas à própria palavra que identifica a Religião dos Òrìsà no Brasil – Candomblé, há também diversos tipos de iniciação. Estes tipos classificam-se, basicamente, em iniciação de adosù e de não adosù. Apenas para exemplificar, há dois conhecidos exemplos de iniciados que podem ser classificados como “não adosù”: os Ogan (homens) e as Ëkëdi (mulheres), também chamadas Ajòyè – como lembra Reginaldo Prandi – Prof. Titular de Sociologia na USP. Nestes dois casos, o(a) seguidor(a) é escolhido por um Òrìsà manifestado durante uma cerimônia de Candomblé e, após um dado período, é confirmado(a). Os iniciados “não adosù”, ao contrário dos adosù, não podem iniciar outras pessoas e têm suas obrigações/tarefas muito bem delimitadas dentro do lado brasileiro da religião, que tem como filosofia o princípio de que não é possível dar a ninguém aquilo que não recebemos, ou seja, aquilo que não temos para dar.
O Prof. Prandi nos ajuda a esclarecer um pouco mais esta questão de iniciados “não adosù, dizendo que um Ogan ou uma Ëkëdji também tem a opção de ser iniciado na condição de adosù, permitindo que no futuro este Ogan ou Ëkëdji venha a desempenhar a função de Bàbálórìsá ou Ìyálórìsà, respectivamente. Ele ainda acrescenta que iniciação e confirmação são conceitos totalmente distintos, uma vez que a confirmação tem o objetivo de transmitir um Oyè a um iniciado.
Sem o objetivo de negar a importância daqueles que não estão classificados como adosù, vamos dedicar este tópico à exploração da iniciação dos adosù, uma vez que é este o único caminho que pode elevar um seguidor à condição de Ìyálórìsà ou Bàbálórìsà – o mais alto cargo dentro da hierarquia de uma casa de Candomblé. Tudo, exatamente tudo, dentro de uma casa de Candomblé deve ser feito com a autorização ou sob o comando da Ìyálórìsà ou Bàbálórìsà que, como já mencionado, foi iniciado(a) na condição de adosù.
Outro fator que deve ser considerado é que, nos primórdios do Candomblé, um homem não tinha o direito de ser iniciado na condição de adosù, somente como Ogan (nesta concepção, “não adosù”). Esta regra até hoje é seguida naquela que é considerada a matriz das casas de Candomblé – a Casa Branca do Engenho Velho em Salvador. O tempo passou, a religião evoluiu e, por razões que fogem ao escopo deste artigo, os homens começaram a ser iniciados como adosù e, para simplificar o texto, a partir deste ponto vamos deixar de usar o gênero das palavras, passando a utilizá-las apenas no masculino em português e feminino nas poucas palavras Yorùbá que utilizaremos. Até lá, vamos prosseguir com o assunto iniciação que, daqui em diante, fará referências somente às informações relevantes da iniciação dos adosù.
Diversos são os caminhos (motivos) que levam uma pessoa a ser iniciada. É praticamente impossível relacionar todos caminhos, já que eles podem ser diretamente proporcionais ao número de pessoas iniciadas até hoje, mas há uma frase que a Ìyálórìsà Kasarandé não cansa de repetir e que muito bem reúne estes vários caminhos: “Ou você chega aos Òrìsá pelo amor, ou pela dor”. Em outras palavras, há pessoas que têm que ser iniciadas, outras o são simplesmente porque assim quiseram e os Òrìsà concordaram, ou seja, estas últimas poderiam esperar o tempo que os Òrìsà julgassem necessário para serem iniciadas – o que poderia significar uma vida inteira, mas preferiram fazê-lo simplesmente porque amavam a religião. E se há um componente que é desejável para um seguidor ser iniciado, este ingrediente é o amor, o qual teórica e automaticamente conduz à dedicação.
O seguidor da Religião dos Òrìsàs – iniciado ou não, adosù ou não, pode e deve ser considerado como omòrìsá – palavra que deve ser dita com muito orgulho diante da sociedade por aqueles que seguem o Candomblé, tal qual fazem os seguidores de outras religiões quando se classificam quanto à religião que praticam. Após esta consideração, temos que classificar o omòrìsà quanto à sua condição dentro da religião – iniciado ou não iniciado. Até que ele seja iniciado, ele será classificado como abíyán.
O Bàbálórìsà Funjiala colabora, definindo abíyán como sendo uma classificação pré-iniciática, ou seja, para alçancar este primeiro degrau, o abòrìsà precisa ter sido submetido a, pelo menos, o ritual de börí. Definida esta classificação, então teremos os abòrìsà “não iniciados” e os omòrìsà que já passaram pelo böri, os abíyán.
Só para confirmar com outras palavras o que já dissemos anteriormente, o abíyán poderá ficar uma vida inteira nesta condição se assim os Òrìsàs desejarem. Por outro lado, se os Òrìsàs decidirem pela iniciação, durante um Candomblé (neste contexto, a cerimônia pública) este abíyán poderá “bolar no santo” – expressão que o Bàbálórìsà Funjiala define como sendo a primeira manifestação física do Òrìsà, a qual tomamos a liberdade de acrescentar à nossa definição inicial de “manifestação física que diz que o omòrìsà deve ser iniciado o mais breve possível”.
Após a definitiva decisão sobre a iniciação, a Ìyálórìsà determinará através do jogo quando o processo terá início. Definida a data, que muito tem a ver com o Òrìsà do futuro iniciado, com as determinações do Òrìsà dono da casa e outras tantas implicações, o abíyàn apresenta-se, pela última vez nesta condição em toda sua existência, diante da Ìyálórìsà. A partir deste momento, ele deu início a um processo que durará SETE anos na esmagadora maioria das nações, familias e casas.
Ele vai ficar hospedado na casa de Candomblé por aproximadamente três semanas, tempo este dependente da casa, família e do próprio Òrìsà do iniciado. Inicialmente, por alguns dias (ou até horas) ele simplesmente descansará. Após este período, será dado inicio a um processo de limpeza física e espiritual, através de banhos rituais (àgbo) e sacrifícios (ëbö), que poderá demorar mais alguns dias.
Feita a “limpeza”, ele será colocado no hunkö – quarto sagrado, de onde só sairá para as cerimônias em outros aposentos do ilé àsë ou locais externos sagrados (p.ex.: mar, cachoeira, mata, rio, etc.). A partir deste momento, o omòrìsà abandona a condição de abíyàn e passa a ser classificado como ìyàwó – noviça, literalmente, “a mais nova esposa”.
Em seguida ele será submetido ao ritual do börí, o qual alimentará um dos mais importantes Òrìsà – Orí. Através da “alimentação” deste Òrìsà, o ritual tem o objetivo de pedir a sua autorização para “trabalhar” com a cabeça da ìyàwó, uma vez que não é possível realizar qualquer cerimônia pessoal relacionada aos Òrìsàs sem antes pedir a permissão de Orí. Uma vez que Orí foi devidamente reverenciado, é hora de iniciar o tratamento do Òrìsà ancestral da ìyàwó.
Segundo a tradição Kétu, até 10 omòrìsà podem ser iniciados em conjunto, o que nunca significa que o serão simultaneamente, pois a iniciação está intimamente vinculada ao Òrìsà de cada pessoa e somente a Ìyálórìsà poderá realizar a cerimônia principal. Com base nestes fatos, entendemos que somente um omòrìsà poderá ser iniciado dentro de um mesmo espaço de tempo. Por outro lado, as cerimônias preliminares e posteriores à iniciação poderão ser feitas de forma simultânea e, por isto, o período é normalmente aproveitado para iniciar mais de uma pessoa. A este grupo de noviços damos o nome de barco, sendo que cada membro, por ordem sequencial (na maioria dos casos, de acordo com a ordem ritual dos Òrìsà ancestrais), recebe um dos seguintes nomes:
Dofono
Gamotin
Dofonitin
Vimo
Fomo
Vimotin
Fomotin
Domo
Gamo
A iniciação é algo muito particular de cada Òrìsà, por isto cada ìyàwó tem seus próprios rituais de iniciação, de acordo com as tradições da nação iniciática. Porém, o básico é feito em todos. Este “básico” consiste na raspagem da cabeça e na abertura de incisões (através de métodos compatíveis com cada Òrìsà) em diversas partes do corpo da ìyàwó. Estas incisões (gbere) têm o principal objetivo de inserir o àsë – um preparado que determinará a ancestralidade da ìyàwó. Entre estas incisões está a principal de todas – o Osù, que é feita ao alto da cabeça e que o iniciado portará enquanto estiver no àiyé (espaço ocupado fisicamente pelos seres viventes).
Na tentativa de tornar um pouco mais clara a importância do Osù, citamos Dra. Juana Elbein dos Santos e seu livro Os Nàgó e a Morte, onde diz: “… a Ìyálàlàsë transfere e planta o àsë na noviça por intermédio de um ciclo ritual que culmina quando, no centro da cabeça da ìyàwó, ela coloca e consagra o Osù…”. Mais adiante ela escreve “Falecida a olórìsà, qualquer que seja sua hierarquia, deverá proceder-se a retirar seu Osù por meio do qual, precisamente, a individualização, o nascimento da adósù foram possíveis. Um sacerdote altamente preparado manipulará sua cabeça de maneira que retire os cabelos do lugar onde o Osù foi plantado…”.
Durante esta importante fase da iniciação, tudo sempre é feito sob a tênue luz de vela (quando o Òrìsà da ìyàwó não exige outro tipo primitivo de iluminação), ao som de cantigas específicas para o momento e diante de olhares das poucas pessoas autorizadas pelo Òrìsà, seja ele da ìyàwó, da casa, da Ìyálórìsà e até mesmo do próprio participante.
Feito isto, será dado início aos sacrifícios animais necessários para o Òrìsà da ìyàwó. Ao contrário do que a grande maioria pensa, segundo a tradição Kétu, animais não são sacrificados sobre a ìyàwó, pois acredita-se que o calor do sofrimento causado pela morte do animal não deve nunca atingir o omòrìsà. Há métodos específicos e pessoas especialmente determinadas para que não seja estabelecido um elo entre o sofrimento físico do animal sacrificado e a pessoa diretamente envolvida no ritual, exceto no que diz respeito a alguns poucos animais.
Um a um, as ìyàwó são submetidas ao processo de iniciação, que pode durar horas que parecem nunca acabar, dependendo do tamanho do barco – grupo de iniciados.
Apesar de já serem chamados de ìyàwó, eles ainda terão uma dura fase pela frente. Com o mais básico comportamento sempre atrelado aos seus Òrisàs ancestrais, eles ainda terão muitos dias de convivência com a ajíbona que, além de ensiná-los como se comportarem diante de seus mais velhos, continuará ensinando as rezas, as danças, etc. Eles ainda serão apresentados por sete vezes àqueles da sua família que estiverem interessados em conhecê-los. Dependendo do Òrìsà, durante estas apresentações serão pintados com wàji (azul), òsún (vermelho) e ëfun (branco) demonstrando sua ascendência e também para que as àjes (entidades feiticeiras) não se aproveitem deles, não os persiga.
Finalizados os procedimentos internos de iniciação, é chegada a hora da cerimônia pública. Aliás, todos grandes rituais do Candomblé culminam em cerimônias públicas, que assumem o papel de confirmadoras do ocorrido, de preferência com a participação de pessoas de outras casas e até mesmo outras famílias. A presença de pessoas pertencentes a outras nações em uma saída de ìyàwó é considerada uma grande honra e, normalmente, terão peso imensurável na escolha da Ìyálórìsà para aquele que tirará o nome da ìyàwó.
Dependendo da casa, a cerimônia pública será precedida por novos rituais que incluem novos sacrifícios. Há até mesmo casas/famílias que realizam o ritual/sacrifício finais poucos minutos antes da primeira apresentação pública. Mas, hoje em dia, devido à grande especulação, ou os ìyàwó saem cobertos por um tecido branco nesta primeira apresentação, ou já o fizeram na madrugada anterior. Queremos dizer que o ápice da iniciação – que consiste na apresentação do Osù (objeto ritualístico altamente sagrado) em público, é atingido de uma forma mais discreta do que o era antigamente. Na atualidade, é mais difícil ver um Osù em cerimônias públicas.
De qualquer maneira, o final desta fase inicial será uma cerimônia pública onde os ìyàwó mostrarão por três vezes que nasceram para uma nova vida, será o Öjo Orúkö Ìyàwó.
Na primeira vez, eles serão apresentados vestidos de branco, pintados de branco (ëfun) com o èkódídë (pena ritualística, um dos símbolos da iniciação) amarrado na cabeça por palha da costa. Na frente deles estará a ajíbona estendendo a ëní – esteira, para que eles “batam pawò" para os locais sagrados da casa e apresentem o dobále (Òrìsà masculinos) e o yìnká (Òrìsà femininos) para a Ìyálórìsà.
Na segunda vez, as roupas serão coloridas, assim como as pinturas que abusarão do vermelho (òsún) e azul (wáji), dependendo do Òrìsà, mostrando a sua ancestralidade através de traços bem definidos. Na verdade, desta vez, a apresentação é bem mais rápida.
Na terceira vez, as roupas já serão as características de cada Òrìsà, ou seja, eles estarão vestidos em belas roupas que revelam os atributos, lembram a história, de seu Òrìsà.
Na segunda saída, dependendo da casa, após os cumprimentos rituais, os ìyàwós serão expostos ao público na ordem hierárquica do barco e a Ìyálórìsà oferecerá cada um deles para que alguém de outra nação, casa, família (normalmente nesta ordem), peça para que o Òrìsà revele publicamente o nome Yorùbá que o iniciado recebeu.
Na terceira saída, os Òrìsà estarão preparados para comemorar os novos nascimentos, pois este é o objetivo da iniciação – nascer para dentro da religião, através das danças rituais. Dependendo do número de ìyàwó, os Òrìsà podem dançar até os raios do sol invadirem o barracão.
Muito bonito sem dúvida, mas engana-se quem pensa que a iniciação acabou. Esquecemo-nos de mencionar que o Kèle – o colar sagrado, foi colocado no pescoço da ìyàwó durante o processo de iniciação. É importante notar que o termo “colar” é utilizado apenas para facilitar o entendimento, pois, apesar de ser colocado no pescoço, o Kèlè não pode ser removido, exceto através de ritual específico. Dependendo da casa, da família, o Kèlè deverá ser carregado por 12 semanas, lembrando que a ìyàwó deverá respeitá-lo evitando todos prazeres mundanos, tais como sexo, álcool, tabaco, etc., além de uma série de proibições – èwó, inerentes a esta fase primária da iniciação. Hoje em dia, na tentativa de tornar o Kèlè objeto de respeito máximo, muitas Ìyálórìsà não deixam seus ìyàwós entrarem para a vida social portando o colar sagrado – preferem tirá-lo do pescoço dos seus filhos antes que estes partam para a vida moderna que os aguarda lá fora. Mas isto não significa que eles estarão livres dos èwó! Talvez eles sejam liberados para comer com talheres em um almoço de negócios, mas isto poderá ser o máximo permitido, pois dormir no chão sobre a ëní e as rezas antes das refeições que não sejam exigidas pela vida profissional continuarão sendo algumas poucas das suas muitas obrigações para com os Òrìsàs. Alguns èwó, dependendo do Òrìsà, da casa, da família, etc., não estarão limitados somente ao período do Kèle, ou seja, deverão ser respeitados por toda vida do iniciado.
Como ensinado pela ajíbona, enquanto eles forem ìyàwó, eles jamais poderão sentar no mesmo nível que os irmãos mais velhos, nem olhar diretamente em seus olhos. É a hierarquia intrínseca ao Candomblé (ou seria à cultura Yorúbà ?) se mostrando: um irmão mais novo não deve nunca ficar acima (fisicamente) de um irmão mais velho. Ao contrário das demais culturas, o “olhos nos olhos” só funciona para pessoas do mesmo nível hierárquico, os que estão abaixo devem sempre olhar para o chão. Esta educação inicial mostrará quem é a pessoa para o resto de sua vida dentro da religião.
Passado o período do Kele, o iyàwó, teoricamente, entra em seu ritmo social normal até o primeiro ano, quando então cumprirá com novas obrigações chamadas de ödún kíni. Depois precisará cumprir com suas obrigações aos três anos (ödún età). Há casas onde também são cumpridas obrigações no quinto ano. Finalmente, vem as obrigações que são a confirmação final da iniciação e que são feitas aos sete anos (ödún éje), quando então a ìyàwó se tornará um Egbon (mais velho) através de uma cerimônia pública, onde poderá receber o conjunto de simbolos da maioridade, comumente chamado de Deká. A partir daí, o Egbon, ou Egbonmi, como é normalmente chamado, estará apto a abrir sua própria casa, caso este seja seu caminho (definido no momento da sua concepção e revelado pelo jogo de búzios), dando origem à sua própria família com base nos ensinamentos que adquiriu durante os sete anos de iniciação, de aprendizado inicial. Durante o referido período, é esperado que ele tenha sido submetido a, e estado presente em, rituais suficientes para que esteja habilitado a, pelo menos, interpretar corretamente as caídas dos búzios, pois muito do que praticará de agora em diante, aprenderá à medida que os Òrìsà digam que ele precisa iniciar os omòrìsà que cruzarem seu caminho.
Aqueles que não têm o “caminho” para assumirem a função de Ìyálórìsà, de abrirem suas próprias casas, continuarão atuando dentro daquela onde foram iniciados, podendo receber nesta cargos e/ou títulos (Oyè) que determinarão os seus papéis junto à sua família. Nesta condição, além das classificações já expostas, estes omòrìsà passarão também a ser classificados como Oloyè.
Conforme define o Prof. Prandi, “receber um Oyè geralmente implica sentar na cadeira (cadeira, trono, representava na África que o indivíduo tinha alta posição social, assim como usar o eru (espanta mosca), o guarda-sol e outros símbolos de prestígio e poder). A confirmação é o ato em que o pai-de-santo ou Òrìsà senta o Oloyè na cadeira, para indicar que ele agora tem status alto, posição elevada, etc. naquele Ëgbe (comunidade)”. Ele adiciona ainda que, ao abrir sua própria casa, a Ìyálórìsà não perde o vínculo com a casa onde foi iniciada, podendo, inclusive, manter um Oyè recebido previamente naquela casa, ou até ser confirmada para um Oyè naquela ou em outra casa após ter constituído sua própria família.
Fonte: http://povodosanto.wordpress.com
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
Baluartes do Candomblé - Mãe Beata de Yemojá
Uso esse blogger com a intenção de falar sobre a minha religião, O Candomblé, que tanto amo e respeito. Não me prendo a colocar aqui fundamentos ou conhecimentos litúrgicos, porém, preocupo-me a externar os grandes feitos dessa religião de cultura milenar, que ainda nos tempos de hoje, sofre com estigmas e preconceitos.
Sem a menor pretensão de auto-promoção, apenas tentando compartilhar aprendizados que venho ganhando ao longo da minha vida espiritual. Por este motivo, surgiu a idéia, em sempre que possível, homenagear a personalidades do nosso Candomblé. Pessoas que com sua garra, determinação e realizações, vem trabalhando para que o Candomblé possa ser visto com outros olhos por pessoas que desconhecem à nossa cultura, e insistem a nos desrespeitar e desmoralizar. Por conta dessas pessoas, da sua expressividade e postura diante da religiosidade, acabaram por virar baluartes e ícones da nossa religião, e que possuem sabedoria à transbordar pelo poros.
A homenageada será Mãe Beata de Yemojá, em razão dos seus recentemente completados 80 anos de vida. Uma sábia senhora que embora tenha passado por toda sorte de adversidades na vida, conserva uma grandiosidade na alma e uma contagiante alegria de viver, além de uma fé nos Òrìsás inabalável. Um exemplo certamente a ser respeitado e seguido por todos nós, adeptos da religião afro.
Mo Júbá Mãe Beata de Yemoja!!! Àwùré Ìyá Mi!
Quem é Mãe Beata de Yemojá?
Filha de Maria do Carmo e Oscar Moreira. É Iyalorixá do Candomblé em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. Seu primeiro bori foi em 1944 com o babalorixá Dionísio Aguiar Pereira de Logunedé. Estavam presentes Severino de Oxóssi, Veve de Iemanjá, Eduardo de Ijexá.
Foi iniciada no candomblé a 26 de Junho de 1956 por Mãe Olga do Alaketu para a orixá Iemanjá. Estavam presentes mãe Regina Bangboshê, Dona Pombinha de Oxossi, Dona Bia de Omolu, Arsênia de Nzazi do Terreiro Bate Folha, Irene de Xangô Bangboshê, Maria Joana do Alákétu de Iansã.
Mãe Beata de Yemonjá, nome pelo qual é conhecida Beatriz Moreira Costa, nasceu em Salvador, BA, em 20 de janeiro de 1931, radicando-se em Miguel Couto, Nova Iguaçu,RJ. Ialorixá do Ilê Omi oju Aro, casa das Águas dos olhos de Oxossi, localizada no Rio de Janeiro, Mãe Beata, por volta de 1980, transformou-se em umas das mais celebradas personalidades do candomblé, do Rio de Janeiro. É umas das integrantes do ICAPRA, Instituto cultural de apoio e pesquisa às religiões afros, a qual visa a difusão das heranças e tradições dos povos brasileiros de origem africana, centrando-se, especialmente, na transmissão religiosa. Mãe Beata, luta demasiadamente por justiça social, realiza trabalhos com soropositivos e doentes de AIDS, sendo também conselheira do MIR (Movimento Inter-Religioso), membro do Unipax (que luta pela paz), integrante do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e, há 13 anos, é presidente de honra da Ong Criola.
No ano de 1997 lança o livro Caroço de Dendê: a sabedoria dos terreiros, pela Pallas editora e em 2004 Histórias que a minha avó contava, pela Terceira Margem. Contadora de histórias, Mãe Beata não faz mais que relatar as tradições e heranças da cultura africana, desde sua infância cercada por descendentes de ex-escravos. Neta de portugueses e africanos escravizados na África, em seguido conduzidos ao Brasil, passou a sua infância nos arrabaldes de Cachoeira do Paraguassu, Bahia, cercada pela presença de mãe Afalá e por outras mulheres de origem africana, essencialmente, pela avó paterna, mulher que, segundo Mãe Beata em seus relatos, “tratava de todos no engenho com suas ervas e mezinhas”. (Caroço de Dendê, pág, 12.)
Beata de Yemonjá, desde a sua juventude, por meio de uma memória coletiva, relata as histórias e os mitos que permeiam a formação da cultura afrobrasileira. Nos dizeres de Vânia Cardoso: “A dinâmica da transmissão oral destas histórias dentro das comunidades-terreiro e a interação entre contadores e ouvintes no dia-a-dia dos terreiros nos levam a pensar nos contos de Mãe Beata como, de certa forma, uma criação coletiva destas comunidades, individualizados pela sua criatividades como contadora de histórias.” (Introdução à Caroço de Dendê , pag13).
Observar-se-á, nas suas narrações, que os mitos da tradição e a memória coletiva são delineadores do seu estilo de construção literária. Na realidade seus contos são as vozes de um tempo e de um espaço, os quais representam a sociedade afro-brasileira. Beata de Yemonjá assim narra o seu nascimento:
"Minha mãe chamava-se do Carmo, Maria do Carmo. Ela tinha muita vontade de ter uma filha. Um dia, ela engravidou. Acontece que, num desses dias, deu vontade nela de comer peixe de água doce. Minha mãe estava com fome e disse: 'Já que não tem nada aqui, vou para o rio pescar.' Ela foi para o rio e, quando estava dentro d'água pescando, a bolsa estourou. Ela saiu correndo, me segurando, que eu já estava nascendo. E eu nasci numa encruzilhada. Tia Afalá, uma velha africana que era parteira do engenho, nos levou, minha mãe e eu, para casa e disse que ela tinha visto que eu era filha de Exu e Yemanjá. Isso foi no dia 20 de Janeiro de 1931. Assim foi o meu nascimento.”
É exatamente nesse contar histórias e nessa luta impetuosa por eqüidade social que Mãe Beata caminha. Percebe-se, portanto, que ela é um grande expoente da cultura negra no Brasil, figura central para compreensão e transmissão da tradição religiosa, uma vez que é o fio condutor da força vital (axé). Filha de Exu e Yemanjá - a mensagem e a comunicação - a escritora propala aos seus seguidores o vasto continente cultural e a história dos povos de origem africana.
LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro
Sua mãe, mulher negra trabalhadora, mas de saúde frágil, legou à sua filha grande respeito à pessoa humana e seu pai, Oscar, a característica de saber lidar com as ferramentas do trabalho e da vida.
Na década de 50 Beatriz muda-se para a cidade de Salvador, ficando sob os cuidados de sua tia Felicíssima e seu marido, Anísio Agra Pereira (Anísio de LogumEde, babalorixá) , na Avenida Ribeiro dos Santos na Sete Portas. Durante dezessete anos, Beata (como é conhecida desde a infância) foi abian de seu tio, que posteriormente falece levando-a a procurar Mãe Olga do Alaketu, que a inicia no candomblé para o orixá Iemanjá no terreiro Ilê Maroia Laji (Alaketu – Salvador).
Mulher que mesmo presa a princípios tradicionais em razão da influência de uma família patriarcal torna-se de vanguarda ao fazer cursos de teatro amador e participar de grupos folclóricos. Casa-se com Apolinário Costa, seu primeiro namorado, com quem teve quatro filhos, Ivete, Maria das Dores, Adailton e Aderbal Moreira Costa. Sua mãe Maria do Carmo antes de falecer tutela a filha a sua yalorixá , Olga do Alaketu.
Em 1969, Beata separa-se de seu marido e migra para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida para ela e sua prole, história comum a tantas outras mulheres negras nordestinas, o sonho da cidade grande.
Sem apoio da família consangüínea, é na família-de-santo que encontra acolhimento, a história se repete no sentimento de resistência do quilombo contemporâneo que reconstrói a auto-estima desta mulher negra.
Para as famílias tradicionais da Bahia da época, mulher separa era mulher de ninguém, ainda mais com quatro filhos. Canta-se um samba, um samba-de-roda baiano que “samba bom é de madrugada, mulher sem homem não vale nada”, por certo não se enquadrava nesse perfil a figura dessa mulher ímpar.
Cria seus filhos com muita dificuldade, porém de modo digno, exercendo várias funções para prover o sustento próprio e dos filhos, como empregada doméstica, costureira, manicure, cabeleireira, pintora e artesã.
Com todas essas atividades e uma jornada árdua de mulher negra nordestina e separada, estigmas fortes para a época, não esquece seus laços religiosos, atuando em várias comunidades de terreiro no Rio de Janeiro mantendo e preservando sua descendência ancestral religiosa negra.
Começa a trabalhar como figurante na Rede Globo de Televisão, atividade resultante de contatos já existentes em Salvador, onde participou da novela “Verão Vermelho”, filmada na referida cidade. Logo após, consegue trabalho como costureira na mesma empresa, onde se aposenta e mantêm contatos com amigos até os dias de hoje.
Entre as décadas de 70 e 80 Beata faz várias viagens a Salvador para cumprir seus deveres religiosos com a Casa de Candomblé na qual foi iniciada, visto que, mesmo atuando religiosamente em casas de parentes religiosos no Rio de Janeiro, seu cordão umbilical estava preso à sua casa matriz, precisava saciar sua sede na fonte.
Durante este espaço de tempo a yalorixá, Olga do Alaketu, tem importância fundamental em sua vida, aconselhando e acolhendo a filha que lhe foi tutelada pela mãe biológica, a figura da mãe ancestral se faz presente. Ao entregar Beata à Olga, Maria do Carmo dá o sentido de continuidade a figura maternal, a mãe africana que acolhe e sustenta seus filhos, característica ainda hoje preservada nas comunidades religiosas de matriz africana.
Em 20 de abril de 1985 Mãe Olga do Alaketu vem ao Rio de Janeiro outorgar a sua filha o direito de ser chamada de “Mãe”, mais uma vez o ciclo se repete, o Ilê Omi Oju Arô (Casa das Águas dos Olhos de Oxóssi) casa em que Mãe Biata passa a ter o cargo de yalorixá. Transmite à comunidade de forma natural toda essa experiência de luta, absorvida facilmente por todos, dando início à participação ativa em discussões sobre questões raciais, sociais e políticas, tendo maior atuação nas questões de gênero, com enfoque principalmente sobre as mulheres negras.
Assim como Beata recebe de seu pai e de sua mãe ensinamentos de vida, ela consegue propagar á sua comunidade religiosa os mesmos princípios. O Ilê Omi Oju Arô, comunidade na qual Biata é sacerdotisa suprema, atua em diversas frentes sociais: religião e saúde, luta contra qualquer forma de discriminação e contra a intolerância religiosa, cultura da paz, acesso à educação, ações afirmativas, saúde da população negra, movimento de diálogo inter-religioso, direitos humanos, movimento de mulheres negras e movimento negro.
Vejamos agora em detalhes a atuação dessa líder religiosa:
ATIVIDADES RELIGIOSAS E SOCIAIS
1985 – Fundação da Comunidade de Terreiro Ilê Omi Ojú Arô (Casa das Águas dos Olhos de Oxóssi) de Beata de Iemanjá, pela sua Yalorixá Mãe Olga do Alaketu, em 20 de abril, no bairro de Miguel Couto, Nova Iguaçu;
1987 – Sedia em sua Comunidade de Terreiro o Terceiro Encontro Regional da Tradição dos Orixás, em 15 de novembro.
1989 – Sedia em sua Comunidade de Terreiro o Décimo Encontro Regional das Religiões Afro-brasileiras em 28 de novembro.
1991 – Recebe da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro moção honrosa e congratulação pela militância e resistência da Cultura, Religião, Cidadania e Dignidade da população Afro-brasileira. Recebe em 20 de novembro Diploma de Personalidade de Destaque da Comunidade Negra no mandado do Deputado Estadual Marcelo Dias no Rio de Janeiro.
1992 – Fórum Global – 92 - participa como cicerone e mentora religiosa no Encontro Mundial pela Paz – RJ. Inicia o Projeto Social Ação e Viver em 18 de maio – viabilizando a participação de jovens carentes da região e integrando-os á Comunidade de Terreiro. Miguel Couto, Nova Iguaçu. Recebe em 13 de maio Diploma de Honra ao Mérito da Prefeitura do Município de Belford Roxo – RJ.
1994 – Realiza no Ilê Omi Oju Arô dentro do Projeto Ação e Viver o Fórum de Debates “Cidadania x Violência”. Miguel Couto, Nova Iguaçu.
1998 – Inicia em julho no Ilê Omi Oju Arô o Projeto Comunidade Solidária do Governo Federal, capacitando profissionalmente na área de informática vinte e cinco jovens carentes da região e integrando-os à Comunidade de Terreiro. Promove em dezembro na sua Comunidade de Terreiro a campanha “Natal sem fome” com distribuição de roupas, brinquedos e cestas básicas à população carente da região.
1999 – Inicia em março a segunda turma do Projeto Comunidade Solidária capacitando profissionalmente jovens carentes da Baixada Fluminense. Miguel Couto, Nova Iguaçu. Realiza oficinas de percussão para jovens de Comunidade de Terreiro da Baixada Fluminense. Miguel Couto, Nova Iguaçu.
2000 – Comemora quinze anos da fundação de seu Terreiro intensificando as atividades sócio-culturais. Abril, Miguel Couto – Nova Iguaçu. Lançamento do Cd “Cantigas de Orixás”. Abril, Miguel Couto – Nova Iguaçu. Realização de oficinas de candomblé para não iniciados, universidades, escolas públicas, eventos culturais e turísticos. Abril, Miguel Couto – Nova Iguaçu.
2001 – Abertura do Rock in Rio, tenda por um mundo melhor.
2002 – Parceria com o Projeto Ató Ire – Saúde dos Terreiros. Parceria com a Ong Criola, que desenvolve projetos para mulheres negras. Lançamento do Projeto Oku Abo. Parceria com a Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu. Recebe o Prêmio Orilaxé, do Afro Reggae. Rio de Janeiro.
2004 – Implanta em sua Comunidade de Terreiro o “Projeto Acelera Jovem” em parceria com o Viva-Rio, voltado para jovens entre 15 e 25 anos que ainda não completaram o ensino fundamental. Outubro, Miguel Couto – Nova Iguaçu. 2004 – Recebe o Prêmio Ossain. Novembro, Rio de Janeiro. 2004 – Participa da peça “Olhos D'água”, de autoria de Ismael Ivo que retratava a discriminação racial através das vivencias de três atrizes negras, uma delas Mãe Biata. Casa da Cultura de Berlim, Alemanha.
2005 – Recebe a Medalha de Mérito Cívico Afro-brasileiro, homenagem conferida pela Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares. Maio, São Paulo.
2007 - Mãe Beata de Iyemonjá recebe o prêmio Bertha Lutz no Senado Federal.
OBRAS PUBLICADAS
1997 – Lança em 30 de abril o seu livro de contos “Caroço de Dendê, Sabedoria dos Terreiros” - RJ.
2000 – Lança “Tradição e Religiosidade”, in O livro da saúde das mulheres negras.Org. Jurema Werneck. Rio de Janeiro.
2005 – Publica em o livro “As histórias que minha avó contava” – RJ
ENCONTROS, SEMINÁRIOS E CONGRESSOS
1988 – Conferência Estadual da Tradição dos Orixás – Debates Ecumenismo e Cultos Afros. Maio, Rio de Janeiro.
Encontro da tradição dos Orixás, Religiões Afro-Brasileiras e seus Adeptos. Setembro, Rio de Janeiro.
1991 – Feira do Livro Afro-brasileiro – Seminário Xangô, o mito herói africano no Brasil. Outubro, Rio de janeiro.
1992 – Seminário “Planeta Fêmea Ética e Espiritualidade: Mulher e sagrado no século XXI”. Junho, Rio de Janeiro.
Encontro “Médicas, bruxas e curandeiras ”. Outubro, Tibá Bom Jardim – Rio de Janeiro.
1994 – Simpósio sobre Cultura e Religiosidade. Setembro, Berlim – Alemanha.
Semana da Cultura Brasileira – Outubro, Berlim – Alemanha.
Religião e Resistência Cultural – Outubro, Berlim – Alemanha.
1995 – Seminário Ervas Medicinas como Terapia. Novembro – Rio de Janeiro.
Pot-pourrit de Saúde – Folhas, Fé e Cura. Novembro - Rio de Janeiro.
300 Anos de Zumbi – Memórias de Resistência. Novembro – Rio de Janeiro.
1996 – Vigília Inter-religiosa de Oração pela Paz e pela Vida. Outubro – Minas Gerais.
1997 - Seminário A Comunidade Afro-brasileira e a Epidemia do HIV (AIDS). Julho, Rio de Janeiro.
Seminário em homenagem a Paulo Freire. Julho, Rio de Janeiro.
Feira de Exposição Afro-esotérica do Rio de Janeiro. Setembro.
Seminário Superando o Racismo. Outubro, São Paulo.
Seminário Candomblés Ontem e Hoje. Outubro, São Paulo.
Jornada Lélia Gonzalez. Dezembro, São Luiz – Maranhão.
1998 – Fórum Espiritual das Religiões Mundial. Julho, São Francisco – Califórnia/EUA.
Seminário Internacional: Rota dos Escravos. Agosto, Brasília / DF.
Seminário African Amerindian Performances From Brazil . Novembro, Nova Iorque/EUA.
2002 – 1º Simpósio Internacional de Contadores de História. Maio, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ.
2004 – Fórum Cultural Mundial – Seminário A Casa Brasil África. Agosto, São Paulo.
2005 – IV Seminário Nacional Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Abril, Belém do Pará.
Encontro com o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim, em conjunto com mais quatro yalorixás para defender a constitucionalidade das cotas para a população negra na UERJ. Abril, Brasília/DF.
Encontro com o Procurador Geral da República, com o objetivo de reivindicar a implementação da Lei 10.639-03, que determina o ensino da História e Cultura Afro-brasileira nas escolas nacionais. Abril, Brasília/DF.
Encontro com a ministra Nilcéia Freire para a exposição das necessidades das mulheres integrantes das Comunidades de Terreiro. Abril, Brasília/DF.
Seminário Promoção da Igualdade Racial no Mercado de Trabalho. Abril, Brasília/DF.
2005 – Primeira Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Julho/agosto, Brasília/DF.
2005 – Congresso Internacional de Tradição e Cultura Iorubá. Agosto, Uerj.
Mãe Beata de Yemonjá, autora de Caroço de Dendê, oferece aos leitores um conjunto de contos representativos da tradição oral africana no Brasil, ainda muito pouca documentada como literatura. Nessas pequenas narrativas, a autora apresenta histórias que foram transmitidas através das gerações de escravos nas
senzalas do Brasil.
Mãe Beata de Yemonjá não se força a se distanciar daquilo que ela acredita para escrever. Pelo contrário, a autora só escreve porque vive todas as experiências retratadas nos contos, todos os dias. Sua vida é atribulada de afazeres ligados a religião e a luta por um lugar melhor dentro da sociedade. Caroço de dendê é um dos resultados desta luta, que leva para muitos
leitores o cotidiano de uma mãe de santo e de seu terreiro de candomblé, a inda muito distante de muitos. Sua obra é composta por várias especificidades do povo brasileiro e por isso carrega uma riqueza impar em cada conto.
Os assuntos tratados nos contos são variados: costumes das comunidades africanas, histórias de divindades e personagens ancestrais, fábulas, apólogos com animais, histórias de natureza religiosa em geral.
A tradição oral ainda é um assunto pouco debatido dentro dos estudos literários do nosso país. Propor uma discussão acerca desse assunto possibilita difundir a
produção literária de origem afro-brasileira e, além disso, discutir os alicerces da literatura, já que toda a literatura clássica que conhecemos, antes de ter o formato escrito, impresso, era, antes de mais nada, fruto da tradição oral. Por isso a pertinência dessa breve conversa, que visa a buscar, na tradição afro-brasileira, material de cunho literário, como a obra de Mãe Beata de Yemonjá e, com isso, conhecer um pouco melhor a cultura que, entre outras, participou e participa na construção da nossa identidade nacional.
Beatriz Moreira Costa, mais conhecida como Mãe Beata de Yemonjá, é fundadora do Ilê Omi Oju Arô, em Miguel Couto no Estado do Rio de Janeiro, que segue a tradição do Alaketo, da Bahia, uma das perpetuadoras da história oral do povo negro no Brasil.
Além disso, uma escritora que busca na tradição africana e afro-brasileira fonte de inspiração para a criação dos seus contos, não só através de sua memória, mas também das experiências vividas por ela e de seus filhos-de-santo. Caroço de Dendê é uma compilação multicultural que traz em sua composição a mistura de valores, conceitos e ideologias impregnados no povo brasileiro. Tanto no que concerne à religiosidade, como também ao cotidiano social e cultural brasileiro.
Ao lermos os contos nos deparamos com uma riqueza tanto nas suas estruturas morfossintáticas como no seu conteúdo simbólico. Isto é, as histórias oferecem um passeio instrutivo pelo mundo, a um tempo jovial e severo, de diferentes tradições africanas, mantidas no Brasil, sobretudo, pelo trabalho das sacerdotisas e das contadoras de histórias, matriarcas e guias espirituais de suas comunidades, como mãe Baeta de Yemonjá. O livro é composto por quarenta e três contos curtos que causam no leitor, a cada leitura, uma reflexão. Entre mitos, fábulas e fenômenos religiosos como o sincretismo brasileiro, Mãe Beata cria e transcria os contos num linguajar de fácil assimilação, chegando perto da tradição dos contos clássicos infantis, isto é, os contos maravilhosos. O perfil dos contos se assemelha às antigas histórias que ouvíamos quando éramos crianças e é essa característica peculiar que faz dos contos de Mãe
Beata de Yemonjá tão especiais, já que hoje, na modernidade não encontramos mais contos como os Contos de Grimm ou de La Fontaine.
Todos os ensinamentos do candomblé são passados oralmente pelos mais velhos. Não existe um livro contendo todas as informações necessárias de que um filho-de-santo necessita para se tornar um membro da comunidade, a experiência do mais velho é passada para o mais novo e assim sucessivamente. Sendo assim, ao lermos os contos de Mãe Beata, percebemos a presença de um narrador participante que interage com os personagens e indica para o leitor os caminhos a serem percorridos. Esse narrador traz de volta o papel do contador de histórias, que se perdeu nos moldes
modernos da literatura de acordo com o autor Walter Benjamin, e até mesmo na nossa vida cotidiana, pois não há mais tempo para ouvir uma boa história. Mãe Beata viaja pelo mundo da fantasia misturando elementos reais e ficcionais, combinando sagas, mitos, adivinhas, ditados, casos-memoráveis e chistes, colocando-nos frente a frente com um mundo repleto de alegorias fantásticas, alegres e até mesmo, trágicas.
Os contos se dividem basicamente por assuntos que vão das fábulas até as relações entre homens e mulheres. Cada conto possui uma moral a ser descoberta pelo leitor no antigo molde “qual é a moral da história?”, intercalando contos mais divertidos com outros mais sérios e de cunho religioso. Porém, po demos encontrar, num mesmo conto, vários elementos distintos, como mitos iorubanos, sincretismo religioso brasileiro, a relação entre iyawo (iniciados) e orixás, entre outros.
Em contrapartida, alguns contos trazem uma temática central, como a relação entre o bem o mal, a importância da mulher como detentora do axé (origem, é a raiz que vem dos antepassados) ou até mesmo dos deveres que são concernentes aos adeptos do candomblé, que buscam incansavelmente o axé (força vital, energia, princípio da vida, força sagrada) dos seus orixás.
Através de um olhar mais atento da obra, da autora e do seu espaço, podemos concluir que além de ser uma bela escritora, Mãe Beata é uma experiente contadora de histórias, já que dentro dos seus contos encontramos aquela car acterística agradável do contar de histórias, características que mostram a voz humana em relevo dentro dos textos. Seus contos apresentam um tom didático e a voz do narrador prevalece em todos eles, levando-nos para um encontro com o aquele narrador que perdeu seu espaço como passar do tempo, que passa sua experiência através daquilo que ele narra. Mãe Beata, apesar de não se dar conta, atualiza o perfil do narrador clássico, pois devolve a ele as rédeas da narrativa.
Mãe Beata escreve como conta, trazendo para o interior das narrativas uma proximidade maior das personagens com os leitores, já que seu estilo se aproxima das tão famosas fábulas. Sua obra pode ser lida tanto por adultos quanto por crianças, pois as histórias contadas, sempre se valem de um elemento maravilhoso e uma lição que
pode ou não ser aprendida.
Mãe Beata transita extraordinariamente entre culturas diversificadas e seus contos refletem esse percurso. Autores como Stuart Hall e Homi Bhabha, chamam esse fenômeno de tradução cultural. Diante das questões tratadas pelos autores, podemos concluir que Mãe Beata é uma escritora traduzida, que leva para a sua escritura elementos culturais brasileiros e africanos, abrangendo o hibridismo afro -brasileiro em toda a sua complexidade.
Os contos vão além de uma simples escritura, já que cada narrativa aborda um elemento cultural brasileiro distinto. Com o auxilio dos antropólogos Pierre Verger e
Roger Bastide, concluí-se que a autora escreve de um lugar muito específico, o candomblé. Sendo assim, podemos dizer que Caroço de dendê é uma produção elaborada através da tradição oral, que Mãe Beata utiliza e tem contato em grande parte, por estar próxima de um terreiro de candomblé.
A cultura africana foi transmitida através da oralidade durante os séculos, até o próprio candomblé sobreviveu no Brasil através da oralidade. Mães e pais -de-santo passaram adiante toda a liturgia usando somente a voz. Até muito pouco tempo atrás, não havia livros que ensinassem uma cantiga, uma reza ou até mesmo como lidar com um orixá. Diante disso, o único meio de transmissão, utilizado pelos sacerdotes do candomblé era a oralidade. Hoje podemos achar alguns títulos que nos fornece algumas informações, porém, grosso modo, pois os grandes ensinamentos só são transmitidos depois da iniciação e através, somente, da oralidade. Sendo assim, concluímos que por ter sido criada envolta na tradição oral, Mãe Beata passou para o papel esse meio de transmissão de conhecimento, que elege a comunicação cotidiana, isto é, a língua falada, como mecanismo de construção ideológica, cultural e literária.
Caroço de Dendê, de Mãe Beata de Yemonjá oferece aos pesquisadores uma fonte enorme de conhecimentos e inquietações, tanto no que se refere à religião africana como também ao que se refere à tão estudada identidade nacional. Sua obra apresenta perspectivas que vão além da questão tratada por este texto e por isso deixamos sempre em aberto novas observações que levarão no futuro, a outras descobertas. No mais fica aqui uma pequena indicação de leitura que levará o leitor ao mundo da infância novamente, onde escutar uma boa história nunca era perda de tempo, ao contrário, sempre diminuía o caminho, rumo a tão sonhada e simples felicidade.
(fonte: www.africaeafricanidades.com)
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