"Na velha aldeia de Ifá tudo transcorria normalmente. Todos faziam seu trabalho, as lavouras davam seus bons frutos, os animais procriavam, crianças nasciam fortes e saudáveis.
Mas um dia, a Morte resolveu concentrar ali sua colheita. Aí tudo começou a dar errado. As lavouras ficaram inférteis, as fontes e correntes de água secaram, o gado e tudo o que era bicho de criação definharam.
Já não havia o que comer e beber. No desespero da difícil sobrevivência, as pessoas se agrediam umas às outras, ninguém se entendia, tudo virava uma guerra.
As pessoas começaram a morrer aos montes. Instalada ali no povoado, a Morte vivia rondando todos, especialmente aspessoas fracas, velhas e doentes.
A Morte roubava essas pessoas e as levava para o outro mundo, longe da família e dos amigos.
A Morte tirava a vida delas.
Na aldeia morria-se de todas as causas possíveis: de doença, de velhice, e até mesmo ao nascer.
Morria-se afogado, envenenado, enfeitiçado. Morria-se por causa de acidentes, maus-tratos e violência. Morria-se de fome, principalmente de fome.
Mas também de tristeza, de saudade e até de amor.
A Morte estava fazendo o seu grande banquete. Havia luto em todas as casas. Todas as famílias choravam seus mortos.
O rei mandou muitos emissários falar com a malvada, mas a Morte sempre respondia que não fazia acordos.
Que ia destruir um por um, sem piedade. Se alguém fosse forte o suficiente para enfrentá-la, que tentasse, mas seu fim seria ainda muito mais sofrido e penoso.
Ela mandou dizer ao rei, por fim:
“Para não dizerem que sou muito rabugenta, até concordo em dar uma chance à aldeia.”
E ria e escarrava ao mesmo tempo, dizendo:
“Basta que uma pessoa me obrigue a fazer o que não quero. Se alguém aqui me fizer agir contra a minha vontade, eu irei embora.”
Depois, cuspindo nos seus interlocutores, completou:
“Mas só vou dar essa oportunidade a uma única pessoa. Não vou dar nem a duas, nem a três.”
E foi-se embora dali, saboreando antecipadamente mais uma vitória.
Mas quem se atreveria a enfrentar a Morte?
Quem, se os mais bravos guerreiros estavam mortos ou ardiam de febre em suas últimas horas de vida?
Quem, se os mais astutos diplomatas havia muito tinham partido?
Foi então que dois meninos, os Ibejis, os irmãos gêmeos Taió e Caiandê, que os fofoqueiros da cidade diziam ser filhos de Ifá, resolveram pregar uma peça na horrenda criatura.
Antes que toda a aldeia fosse completamente dizimada, eles resolveram dar umbasta aos ataques da Morte.
Decidiram os Ibejis:
“Vamos dar um chega-pra-lá nessa fedorenta figura.”
Os meninos pegaram o tambor mágico, que tocavam como ninguém, e saíram à procura da Morte.
Não foi difícil achá-la numa estrada próxima, por onde ela perambulava em busca de mais vítimas.
Sua presença era anunciada, do alto, por um bando de urubus que sobrevoavam a incrível peçonhenta.
E o cheiro, ah, o cheiro!
A fedentina que a Morte produzia à sua volta faria vomitar até uma estatueta de madeira.
Os meninos se esconderam numa moita e, tapando o nariz com um lenço, esperaram que ela se aproximasse.
Não tardou e a Morte foi chegando.
Os irmãos tremeram da cabeça aos pés.
Ainda escondidos na moita, só de olhar para ela sentiram como os pêlos dos seus braços se arrepiavam.
A pele era branca, fria e escamosa; o cabelo, sem cor, desgrenhado e quebradiço.
Sua boca sem dentes expelia uma baba esbranquiçada e purulenta.
Seu hálito era de um fedor tremendo.
Mas podia-se dizer que a Morte estava feliz e contente.
Ela estava até cantando!
Pudera, tendo ceifado tantas vidas e tendo tantas outras para extinguir.
Mas o canto da Morte era tão cavernoso e desafinado que os passarinhos que ainda sobreviviam silenciavam como se fossem mudos brinquedos de pedra.
O canto da Morte, se é que podemos chamar aquele ruído de canto, era tão desconfortável e medonho que os cachorros esqueléticos uivavam feito loucos e os gatos magrelos bufavam e se arrepiavam todos.
Nesse momento, numa curva do caminho, enquanto um dos irmão ficava escondido, o outro saltou do mato para a estrada, a poucos passos da Morte.
Saltou com seu tambor mágico, que tocava sem cessar, com muito ritmo.
Tocava com toda a sua arte, todo o seu vigor.
Tocava com determinação e alegria.
Tocava bem como nunca tinha tocado antes.
A Morte se encantou com o ritmo do menino que, com seu passo trôpego, ensaiou um dança sem graça.
E lá foi ela, alegre como ninguém, dançando atrás do menino e de seu tambor, ele na frente, ela atrás.
O espetáculo era grotesco, a dança da Morte era, no mínimo, patética.
Nem vou contar como foi a cena: cada um que imagine por conta própria.
E é bem fácil imaginar.
Bem; lá ia o menino tocador e atrás ia a Morte.
Passou-se uma hora, passou-se outra e mais outra.
O menino não fazia nenhuma pausa e a Morte começou a se cansar.
O sol já ia alto, os dois seguiam pela estrada afora, e o tambor sem parar, tá tá tatá tá tá tatá.
O dia deu lugar à noite e o tambor sem parar, tá tá tatá tá tá tatá.
E assim ia a coisa, madrugada adentro.
O menino tocava, a Morte dançava.
O menino ia à frente, sempre ligeiro e folgazão.
A Morte seguia atrás, exausta, não agüentando mais.
“Pára de tocar, menino, vamos descansar um pouco”, ela disse mais de uma vez.
Ele não parava.
“Pára essa porcaria de tambor, moleque, ou hás de me pagar com a vida”, ela ameaçou mais de uma vez.
E ele não parava.
“Pára que eu não agüento mais”, ela implorava.
E ele não parava.
Taió e Kaiandê eram gêmeos idênticos.
Ninguém sabia diferenciar um do outro, muito menos a Morte, que sempre foi cega e burra.
Pois bem, o moleque que a Morte via tocando na estrada sem parar não era sempre o mesmo menino.
Uma hora tocava Taió, enquanto Kaiandê seguia por dentro do mato.
Outra hora, quando Taió estava cansado, Kaiandê, aproveitando um curva da estrada, substituía o irmão no tambor.
Taió entrava no mato e acompanhava a dupla sem se deixar ver.
No mato o Irmão que descansava podia fazer xixi, beber a água depositada nas folhas dos arbustos, enganar a fome comendo frutinhas silvestres.
Os gêmeos se revezavam e a música não parava nunca, não parava nem por um minuto sequer.
Mas a Morte, coitada, não tinha substituto, não podia parar, nem descansar, nem um minutinho só.
E o tambor sem cessar, tá tá tatá tá tá tatá.
Ela já nem respirava:
“Pára, pára, menino maldito.”
Mas o menino não parava.
E assim foi, por dias e dias.
Até os urubus já tinham deixado de acompanhar a Morte, preferindo pousar na copa de umas árvores secas.
E o tambor sem parar, tá tá tatá tá tá tatá, uma hora Taió, outra hora Kaiandê.
Por fim, não agüentando mais, a aparição gritou:
“Pára com esse tambor maldito e eu faço tudo o que me pedires.”
O menino virou-se para trás e disse:
“Pois então vá embora e deixe a minha aldeia em paz.”
“Aceito”, berrou a nauseabunda, vomitando na estrada.
O menino parou de tocar e ouviu a Morte dizer:
“Ah! que fracasso o meu. Ser vencida por um simples pirralho.”
Então ela virou-se e foi embora.
Foi para longe do povoado, mas foi se lastimado:
“Eu me odeio. Eu me odeio.”
Só as moscas acompanhavam a Morte, circundando sua cabeça descarnada.
Tocando e dançando, os gêmeos voltaram para a aldeia para dar a boa notícia.
Foram recebidos de braços abertos.
Todos queriam abraçá-los e beijá-los.
Em pouco tempo a vida normal voltou a reinar no povoado, a saúde retornou às casas e a alegria reapareceu nas ruas.
Muitas homenagens foram feitas aos valentes Ibejis.
Mesmo depois de transcorrido certo tempo, sempre que Taió e Kaiandê passavam na direção do mercado, havia alguém que comentava:
“Olha os meninos gêmeos que nos salvaram.”
E mais alguém complementava:
“Que a lembrança de sua valentia nunca se apague de nossa memória.”
Ao que alguém acrescentava:
“Mas eles não são a cara do Adivinho?”
Mas um dia, a Morte resolveu concentrar ali sua colheita. Aí tudo começou a dar errado. As lavouras ficaram inférteis, as fontes e correntes de água secaram, o gado e tudo o que era bicho de criação definharam.
Já não havia o que comer e beber. No desespero da difícil sobrevivência, as pessoas se agrediam umas às outras, ninguém se entendia, tudo virava uma guerra.
As pessoas começaram a morrer aos montes. Instalada ali no povoado, a Morte vivia rondando todos, especialmente aspessoas fracas, velhas e doentes.
A Morte roubava essas pessoas e as levava para o outro mundo, longe da família e dos amigos.
A Morte tirava a vida delas.
Na aldeia morria-se de todas as causas possíveis: de doença, de velhice, e até mesmo ao nascer.
Morria-se afogado, envenenado, enfeitiçado. Morria-se por causa de acidentes, maus-tratos e violência. Morria-se de fome, principalmente de fome.
Mas também de tristeza, de saudade e até de amor.
A Morte estava fazendo o seu grande banquete. Havia luto em todas as casas. Todas as famílias choravam seus mortos.
O rei mandou muitos emissários falar com a malvada, mas a Morte sempre respondia que não fazia acordos.
Que ia destruir um por um, sem piedade. Se alguém fosse forte o suficiente para enfrentá-la, que tentasse, mas seu fim seria ainda muito mais sofrido e penoso.
Ela mandou dizer ao rei, por fim:
“Para não dizerem que sou muito rabugenta, até concordo em dar uma chance à aldeia.”
E ria e escarrava ao mesmo tempo, dizendo:
“Basta que uma pessoa me obrigue a fazer o que não quero. Se alguém aqui me fizer agir contra a minha vontade, eu irei embora.”
Depois, cuspindo nos seus interlocutores, completou:
“Mas só vou dar essa oportunidade a uma única pessoa. Não vou dar nem a duas, nem a três.”
E foi-se embora dali, saboreando antecipadamente mais uma vitória.
Mas quem se atreveria a enfrentar a Morte?
Quem, se os mais bravos guerreiros estavam mortos ou ardiam de febre em suas últimas horas de vida?
Quem, se os mais astutos diplomatas havia muito tinham partido?
Foi então que dois meninos, os Ibejis, os irmãos gêmeos Taió e Caiandê, que os fofoqueiros da cidade diziam ser filhos de Ifá, resolveram pregar uma peça na horrenda criatura.
Antes que toda a aldeia fosse completamente dizimada, eles resolveram dar umbasta aos ataques da Morte.
Decidiram os Ibejis:
“Vamos dar um chega-pra-lá nessa fedorenta figura.”
Os meninos pegaram o tambor mágico, que tocavam como ninguém, e saíram à procura da Morte.
Não foi difícil achá-la numa estrada próxima, por onde ela perambulava em busca de mais vítimas.
Sua presença era anunciada, do alto, por um bando de urubus que sobrevoavam a incrível peçonhenta.
E o cheiro, ah, o cheiro!
A fedentina que a Morte produzia à sua volta faria vomitar até uma estatueta de madeira.
Os meninos se esconderam numa moita e, tapando o nariz com um lenço, esperaram que ela se aproximasse.
Não tardou e a Morte foi chegando.
Os irmãos tremeram da cabeça aos pés.
Ainda escondidos na moita, só de olhar para ela sentiram como os pêlos dos seus braços se arrepiavam.
A pele era branca, fria e escamosa; o cabelo, sem cor, desgrenhado e quebradiço.
Sua boca sem dentes expelia uma baba esbranquiçada e purulenta.
Seu hálito era de um fedor tremendo.
Mas podia-se dizer que a Morte estava feliz e contente.
Ela estava até cantando!
Pudera, tendo ceifado tantas vidas e tendo tantas outras para extinguir.
Mas o canto da Morte era tão cavernoso e desafinado que os passarinhos que ainda sobreviviam silenciavam como se fossem mudos brinquedos de pedra.
O canto da Morte, se é que podemos chamar aquele ruído de canto, era tão desconfortável e medonho que os cachorros esqueléticos uivavam feito loucos e os gatos magrelos bufavam e se arrepiavam todos.
Nesse momento, numa curva do caminho, enquanto um dos irmão ficava escondido, o outro saltou do mato para a estrada, a poucos passos da Morte.
Saltou com seu tambor mágico, que tocava sem cessar, com muito ritmo.
Tocava com toda a sua arte, todo o seu vigor.
Tocava com determinação e alegria.
Tocava bem como nunca tinha tocado antes.
A Morte se encantou com o ritmo do menino que, com seu passo trôpego, ensaiou um dança sem graça.
E lá foi ela, alegre como ninguém, dançando atrás do menino e de seu tambor, ele na frente, ela atrás.
O espetáculo era grotesco, a dança da Morte era, no mínimo, patética.
Nem vou contar como foi a cena: cada um que imagine por conta própria.
E é bem fácil imaginar.
Bem; lá ia o menino tocador e atrás ia a Morte.
Passou-se uma hora, passou-se outra e mais outra.
O menino não fazia nenhuma pausa e a Morte começou a se cansar.
O sol já ia alto, os dois seguiam pela estrada afora, e o tambor sem parar, tá tá tatá tá tá tatá.
O dia deu lugar à noite e o tambor sem parar, tá tá tatá tá tá tatá.
E assim ia a coisa, madrugada adentro.
O menino tocava, a Morte dançava.
O menino ia à frente, sempre ligeiro e folgazão.
A Morte seguia atrás, exausta, não agüentando mais.
“Pára de tocar, menino, vamos descansar um pouco”, ela disse mais de uma vez.
Ele não parava.
“Pára essa porcaria de tambor, moleque, ou hás de me pagar com a vida”, ela ameaçou mais de uma vez.
E ele não parava.
“Pára que eu não agüento mais”, ela implorava.
E ele não parava.
Taió e Kaiandê eram gêmeos idênticos.
Ninguém sabia diferenciar um do outro, muito menos a Morte, que sempre foi cega e burra.
Pois bem, o moleque que a Morte via tocando na estrada sem parar não era sempre o mesmo menino.
Uma hora tocava Taió, enquanto Kaiandê seguia por dentro do mato.
Outra hora, quando Taió estava cansado, Kaiandê, aproveitando um curva da estrada, substituía o irmão no tambor.
Taió entrava no mato e acompanhava a dupla sem se deixar ver.
No mato o Irmão que descansava podia fazer xixi, beber a água depositada nas folhas dos arbustos, enganar a fome comendo frutinhas silvestres.
Os gêmeos se revezavam e a música não parava nunca, não parava nem por um minuto sequer.
Mas a Morte, coitada, não tinha substituto, não podia parar, nem descansar, nem um minutinho só.
E o tambor sem cessar, tá tá tatá tá tá tatá.
Ela já nem respirava:
“Pára, pára, menino maldito.”
Mas o menino não parava.
E assim foi, por dias e dias.
Até os urubus já tinham deixado de acompanhar a Morte, preferindo pousar na copa de umas árvores secas.
E o tambor sem parar, tá tá tatá tá tá tatá, uma hora Taió, outra hora Kaiandê.
Por fim, não agüentando mais, a aparição gritou:
“Pára com esse tambor maldito e eu faço tudo o que me pedires.”
O menino virou-se para trás e disse:
“Pois então vá embora e deixe a minha aldeia em paz.”
“Aceito”, berrou a nauseabunda, vomitando na estrada.
O menino parou de tocar e ouviu a Morte dizer:
“Ah! que fracasso o meu. Ser vencida por um simples pirralho.”
Então ela virou-se e foi embora.
Foi para longe do povoado, mas foi se lastimado:
“Eu me odeio. Eu me odeio.”
Só as moscas acompanhavam a Morte, circundando sua cabeça descarnada.
Tocando e dançando, os gêmeos voltaram para a aldeia para dar a boa notícia.
Foram recebidos de braços abertos.
Todos queriam abraçá-los e beijá-los.
Em pouco tempo a vida normal voltou a reinar no povoado, a saúde retornou às casas e a alegria reapareceu nas ruas.
Muitas homenagens foram feitas aos valentes Ibejis.
Mesmo depois de transcorrido certo tempo, sempre que Taió e Kaiandê passavam na direção do mercado, havia alguém que comentava:
“Olha os meninos gêmeos que nos salvaram.”
E mais alguém complementava:
“Que a lembrança de sua valentia nunca se apague de nossa memória.”
Ao que alguém acrescentava:
“Mas eles não são a cara do Adivinho?”
Fonte: Cantinho Poético